O DEUS MENINO NAS CARTAS DA BEATA GABRIELA SAGHEDDU
Ao nos aproximarmos do Natal, nosso coração se enche de alegria pela
oportunidade de mais uma vez reviver o mistério da encarnação de Deus. Nesse
tempo solene em que a Igreja nos coloca diante do presépio de Nosso Senhor, sob
uma humildade plenamente divina e plenamente humana, tivemos a oportunidade de
meditar alguns apontamentos da beata Gabriela Sagheddu, monja trapista, sobre
essa noite feliz. Trata-se de uma festa tão antiga, mas ao mesmo tempo tão nova
que, por mais que a perscrutemos, nunca poderemos esgotar a totalidade do seu
significado.
Escrevendo à sua mãe, ao final do ano de 1938, já estando em fase avançada
de padecimento pela tuberculose, houve um período de melhora clínica após
extração de líquido pleural (líquido esse que pode se formar na cavidade
pulmonar entre suas membranas – as pleuras – gerando importante desconforto
respiratório e febre). Nessa janela de oportunidade, a beata Gabriela Sagheddu
louva a Deus e escreve belas palavras sobre o Natal. Inicia contemplando a
grandeza das coisas de Deus dizendo que “este Deus Menino nos dá tantas lições
que nunca chegaremos a entendê-las plenamente”. Deus, que é amor e misericórdia
infinita, revelou, em seu nascimento (e também em sua cruz), uma face de amor
pela humanidade que nenhum homem seria capaz de alcançar por seus próprios
méritos, diante da qual todos os joelhos devem se curvar. Diz ela ainda: “Ele,
o Deus Criador do Universo, se humilha até nascer num pobre estábulo, abrigo de
animais, onde passa despercebido a todos”; e acrescenta: “observe que nós
fazemos o contrário. Quase temos vergonha de ser pobres e, às vezes, quase
queremos esconder nossa pobreza”.
Se fizermos uma análise sincera de nossos atos, veremos quantas foram as
vezes que nos apresentamos diante de Deus para “exibir” nossos méritos. Uma
pequena penitência, um simples terço bem rezado infla-nos o ego em dizer: “Como
sou católico! Quanto sou merecedor do Reino de Deus!”, quando, na verdade, Deus
nos deu em seu natal o modo como Ele quer nos receber: na simplicidade, no reconhecimento
de nossa fragilidade, na humildade em reconhecer que fazemos a todo momento
atos de fé, mas que jamais, por nossa forças, conseguiremos prestar um culto
total à Sua Majestade, exceto se d’Ele mesmo vier a força para tal. Em um ato
de humildade, devemos pedir a Deus que coloque em nossa alma os dons do
Espírito Santo para que, por meio deles e por eles, possamos ser servos bons e
fiéis a corresponder em nossas vidas ao desejos de Deus.
Nesse ano de 2020, quando fomos tomados pelo sofrimento global da pandemia,
as palavras da beata Gabriela Sagheddu mostram-se iluminadas e atemporais,
sobretudo quando nos diz nessa mesma carta: “Quem ousará rebelar-se, se pensar
nas humilhações e sofrimentos do Deus-homem?”. Se fizermos um paralelo de nossa
vida esse ano com a vida da Sagrada Família, veremos que ela, que tem uma
dignidade infinitamente maior que a nossa, passou por tribulações muito maiores
que as deste ano. Tivemos de deixar de ir a festas e aniversários; a Sagrada
Família, na pessoa de São José, teve de viver o sofrimento de ver o seu
casamento possivelmente não concretizado, pois Maria ficara grávida antes do
casamento, o que era inadmissível perante a Lei. Tivemos nossa liberdade de ir
e vir cerceada; a Sagrada Família foi perseguida e teve de descer ao Egito.
Tivemos de nos voltar para o comércio virtual e amargar o tempo de espera dos
correios; a Sagrada Família não teve condições de fazer um enxoval para acolher
o Menino-Deus. Tivemos de ver as visitas hospitalares limitadas a um
acompanhante nos momentos de parto; a Sagrada Família não teve hospital, não
teve berço, não teve obstetra, somente a manjedoura na qual os animais se
alimentavam. Desse modo, podemos ver que Jesus – sendo Deus – submeteu-se a um
rebaixamento tamanho que nem mesmo ao mais simples homem seria tolerável. Ora,
sendo Ele de natureza divina, tal rebaixamento é um escândalo ainda maior.
Olhando pela ótica da fé, podemos perceber como nosso fardo é abrandado por Deus, como somos amados e cuidados pelo Senhor, pois Ele trouxe para Si todos os sofrimentos da humanidade e nos deu a certeza de que se Ele permite passarmos por sofrimentos é porque, unidos a Ele, podemos tirar grande proveito e grande bem. A chegada ao Natal deste ano já nos mostra isso; independente do que aconteceu, o Natal será celebrado mais uma vez nesses mais 2.000 anos de caminhada da Igreja. Diz a beata Gabriela Sagheddu sobre as virtudes próprias do berço divino: “A doçura, a humildade e o amor”; tais virtudes ela desejou que sua mãe a recebesse nesta sublime data. Também nós tenhamos a disposição de receber tais virtudes para nos unirmos cada vez mais a Ele, que é o caminho, a verdade e a vida (cf. Jo 14,6).
Vitor Roberto Pugliesi Marques. Médico neurologista e neurofisiologista. Oblato beneditino do Mosteiro Nossa Senhora da Glória – Uberaba/MG.
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