A AMPLITUDE DA LEGÍTIMA DEFESA



Este artigo apresenta como lícita a legítima defesa no âmbito legal e moral.

I) ASPECTO LEGAL

O tema da legítima defesa – garantida por direito natural, moral e legal – sempre vem à tona, especialmente nos meios policiais, pois é aí que se dá, com maior frequência, o embate entre a lei e o crime.

Nesse contexto, este artigo, pressupondo como claras as noções de legítima defesa (cf. Vanderlei de Lima. Seu ‘manual’de legítima defesa legal e moral. Ed. do Autor, 2019, p. 10-20), deseja responder uma questão crucial: como entender a amplitude da legítima defesa à luz da lei humana? – Sobre a lei divina trataremos na parte II abaixo.

O ponto de partida é o artigo 25 do Código Penal (CP): “Entende-se em legítima defesa quem, usando moderadamente dos meios necessários, repele injusta agressão, atual ou iminente, a direito seu ou de outrem”. Aqui, trabalharemos o referido artigo tendo em vista a ação policial, embora nossa reflexão possa – e até deva – servir a todas as pessoas de bem deste imenso Brasil.

Recordemos que Wilson Witzel, atual governador do Rio de Janeiro e juiz de Direito aposentado, disse, ainda em campanha, que snipers da Polícia Militar (PM) seriam por ele autorizados – com base no artigo 25 do CP – a abater, no Estado, criminosos portando fuzis. Indagados, à época, numa palestra sobre o assunto, respondemos que tudo depende da interpretação legal que Witzel faz da palavra “iminente”. Sim, supondo-se que um cidadão normal a portar uma vara de pesca irá pescar, a correlação lógica parece clara: quem carrega um fuzil irá atirar... e atirar em inocentes. Ora, tais inocentes devem ser defendidos pela Polícia que tem não só o direito, mas também o dever de fazê-lo. Logo, o único meio de defendê-los (uma vez que com criminosos perversos não se negocia) é neutralizando, por meio de tiros certeiros, o sujeito armado. Tal interpretação do artigo 25 do CP que Witzel faz é útil e traz luz sobre ações policiais por todo o Brasil.

Com efeito, escreve o jurista Guilherme Nucci: “Cabe destacar que o estado de atualidade da agressão necessita ser interpretado com a indispensável flexibilidade, pois é possível que uma atitude hostil cesse momentaneamente, mas o ofendido pressinta que vai ter prosseguimento em seguida”. Neste caso, esse ofendido continua “legitimado a agir, sob o manto da atualidade da agressão. É o que ocorre, por exemplo, com o atirador que, errando os disparos, deixa a vítima momentaneamente, em busca de projéteis para recarregar a arma e novamente atacar. Pode o ofendido investir contra ele, ainda que o colha pelas costas, desde que fique demonstrada a intenção do agressor de prosseguir no ataque. Igualmente, não se descaracteriza a atualidade ou iminência de uma agressão simplesmente pelo fato de existir inimizade capital entre agressor e ofendido” (Manual de direito penal. Rio de Janeiro: Forense, 2014, p. 211).

Isso poderia ser erroneamente interpretado como “legítima defesa contra atos preparatórios”, ou seja, um mero defender-se de supostas ações não necessariamente comprovadas. Afinal, quem garante se o sujeito armado irá, em seu livre arbítrio, atirar ou não? O policial deveria, portanto, esperar ao menos um claro gesto ameaçador da parte do criminoso para agir, dirá algum ingênuo ou inocente útil de plantão.

Nós, todavia, sustentamos o contrário: o policial deve atuar ante o perigo iminente. Nossa afirmação se sustenta no parecer de dois afamados juristas. Guilherme Nucci, já citado, assegura: “No contexto da iminência, deve-se levar em conta a situação de perigo gerada no espírito de quem se defende. Seria demais exigir que alguém, visualizando agressão pendente, tenha que aguardar algum ato de hostilidade manifesto, pois essa espera lhe poderia ser fatal” (idem, p. 211 – Itálico nosso). Já Magalhães Noronha diz: “a agressão há de ser atual ou iminente, porém não se exclui a justificativa contra os atos preparatórios, sempre que estes denunciarem a iminência de agressão” (Direito penal. São Paulo: Saraiva, 2004, v. 1, p. 198 – Itálico nosso).

Em suma, o parecer dos consagrados juristas rechaça – e não poderia ser diferente! – a execução sumária onde quer que seja, mas garante ao policial (e a todas as pessoas de bem) o exercício natural, moral e legal da legítima defesa sempre – e sempre mesmo – que ele estiver na iminência de sofrer um ataque criminoso certeiro.

II) ASPECTO MORAL

           A legítima defesa – garantida a todos por direito natural, moral e legal – já foi aqui tratada, no aspecto jurídico. Agora, voltamos ao assunto à luz da doutrina católica.

      Iniciemos com o Catecismo da Igreja Católica: “Quem defende a sua vida não é réu de homicídio, mesmo que se veja constrangido a desferir sobre o agressor um golpe mortal: ‘Se, para nos defendermos, usarmos de uma violência maior do que a necessária, isso será ilícito. Mas se repelirmos a violência com moderação, isso será lícito [...]. E não é necessário à salvação que se deixe de praticar tal ato de defesa moderada para evitar a morte do outro: porque se está mais obrigado a velar pela própria vida do que pela alheia’” (n. 2264 – Itálico nosso).

          Mais: o mesmo Catecismo afirma que “a legítima defesa pode ser não somente um direito, mas até um grave dever para aquele que é responsável pela vida de outrem. Defender o bem comum implica colocar o agressor injusto na impossibilidade de fazer mal. É por esta razão que os detentores legítimos da autoridade têm o direito de recorrer mesmo às armas para repelir os agressores da comunidade civil confiada à sua responsabilidade” (n. 2265 – Itálicos nossos).

         Caso o injusto agressor precise ser eliminado, o policial não é culpado de homicídio, pois, neste caso, a culpa da morte recai sobre o próprio criminoso. Isso o ensina, à luz de séria doutrina – cf. S. Tomás de Aquino, Suma Teológica, II-II, q. 6-1, a. 7; S. Afonso de Ligório, Teologia moral, I. III, tr. 4, C. 1 dub. 3.) –, o Papa São João Paulo II ao escrever que “nesta hipótese, o desfecho mortal há de ser atribuído ao próprio agressor que a tal se expôs com a sua ação, inclusive no caso em que ele não fosse moralmente responsável por falta do uso da razão” (Evangelium vitae, 1995, n. 55).
            
          Sintetizando: 1. Quem mata em legítima defesa não comete pecado de homicídio, pois o injusto agressor é quem, no caso, procurou a própria morte ao tentar, de modo censurável, tirar a vida do outro. 2. Só cometerá pecado aquele que extrapolar sua ação na legítima defesa (um tiro bastava para conter o agressor, mas ele lhe fez dez disparos, por exemplo). Contudo, tal pecado quase nunca ocorre, pois quem se defende está sob forte excitação. 3. Quem mata em legítima defesa, se depender apenas desse ponto para ganhar o céu, pode trazer a firme esperança de sua salvação, pois tem “ficha limpa” diante de Deus. 4. Isso porque a própria vida é dom precioso de Deus a ser defendido (cf. Catecismo da Igreja Católica n. 2263-2265). 5. Os responsáveis pela vida de outros (lembremo-nos dos policiais), caso não reajam à altura para neutralizar os criminosos pecam gravemente, pois deixam o próximo que deles depende entregue aos maus (cf. Bernard Häring. A lei de Cristo. Barcelona: Herder, II, sec. II, online. Mercaba.org).

          Restam ainda alguns pontos importantes: 1) se for possível, prender um criminoso sem lhe tirar a vida é isto preferível, pois dá-se a ele (ao menos em tese) a chance de mudar de vida; 2) na dúvida de saber se matar o agressor é o único – ou ao menos o meio mais seguro para dele escapar – o atacado de modo injusto, certamente, tem o direito de fazê-lo; 3) não é só pela vida, mas também pela liberdade pessoal, pela integridade corporal e pelos bens essenciais para se viver que é lícito levar à morte o injusto agressor; 4) não se pode antecipar-se ao injusto agressor, atacando-o sem necessidade; porém quando não há outro meio de defender-se a si mesmo e aos seus de um ataque certeiro por parte do agressor, é, sim, lícito antecipar-se a ele (cf. idem).

       Finalizemos com Bernard Häring, teólogo moralista redentorista, ao ensinar o seguinte: “O inocente possui sobre o injusto agressor a vantagem moral de poder empregar quantos meios sejam adequados, necessários e proporcionados para defender-se a si mesmo e aos seus e evitar graves males”’ (ibidem – tradução nossa). Os juristas concordam com esta afirmação. Guilherme Nucci, por exemplo, escreve: “Não há cálculo preciso no uso dos meios necessários, sendo indiscutivelmente fora de propósito pretender construir uma relação perfeita entre ataque e defesa”. [...] “O agressor pode estar, por exemplo, desarmado e, mesmo assim, a defesa ser realizada com emprego de arma de fogo, se esta for o único meio que o agredido tem ao seu alcance” (Manual de direito penal. Rio de Janeiro: Forense, 2014, p. 215-216).

           Possam tais ensinamentos ser muito úteis aos interessados!

           Vanderlei de Lima é eremita de Charles de Foucauld. Graduado em Filosofia com extensão em Direito e Punição, ambos pela PUC-Campinas, SP.

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