O PAPA FRANCISCO E A LITERATURA
No dia 17 de julho último, o Santo Padre, o Papa Francisco, assinou uma Carta sobre o papel da literatura na educação, mas sobretudo na formação sacerdotal. Foi ela publicada em 4 de agosto, memória litúrgica de São João Maria Vianney e dia do Padre. Ele mesmo se refere às suas intenções logo no início do documento: “Inicialmente, tinha escrito um título alusivo à formação sacerdotal, mas depois pensei que o que se segue pode ser dito, de modo semelhante, em relação à formação de todos os agentes pastorais e de qualquer cristão”.
Logo de início, dois pontos devem ser afastados da intenção do Papa: a) não se trata meramente da literatura como se ela se referisse, no Brasil, a Machado de Assis, Castro Alves, Guimarães Rosa etc., b) nem de leituras obrigatórias aos estudos seminarísticos com obras específicas de Filosofia e Teologia, mas da leitura amena e despretensiosa fora das obras essenciais da formação. Aclarados estes pontos, pergunta-se: Qual é, pois, a real intenção do Papa?
Parece ser, especialmente no que toca aos Seminários, a da oferta de “momentos de leitura serena e livre, a falar dos livros que, novos ou antigos, continuam a dizer-nos tanto. Mas, em geral, é preciso constatar, com pesar, a falta de um lugar adequado da literatura na formação daqueles que se destinam ao ministério ordenado. [...] Com poucas exceções, a atenção à literatura é considerada como algo não essencial. A este respeito, gostaria de afirmar que tal perspectiva não é boa. Ela está na origem de uma forma de grave empobrecimento intelectual e espiritual dos futuros sacerdotes, que ficam assim privados de um acesso privilegiado, precisamente através da literatura, ao coração da cultura humana e, mais especificamente, ao coração do ser humano. Com esta carta, desejo propor uma mudança radical de atitude em relação à grande atenção que deve ser dada à literatura no contexto da formação dos candidatos ao sacerdócio” (n. 4-5; cf. n. 23). Quer o Papa deixar assente “o papel que a literatura pode desempenhar na educação do coração e da mente do pastor ou futuro pastor, no sentido de um exercício livre e humilde da sua racionalidade, de um reconhecimento fecundo do pluralismo das linguagens, de um alargamento da sua sensibilidade humana e, finalmente, de uma grande abertura espiritual para escutar a Voz através de muitas vozes” (n. 41). Afinal, o que sentimos na literatura é, não raras vezes, o que nós mesmos vivemos naquele momento da nossa existência (cf. n. 6). Também a Igreja, especialmente por meio da literatura e da arte, nos seus primórdios, soube travar diálogo com as antigas culturas e levar ali, sem fundamentalismos, mas valorizando o que de bom e nobre nelas encontrou, o Evangelho. O próprio apóstolo Paulo valeu-se disso (cf. n. 8-13). Pode-se, portanto, dizer que é “do acontecimento cristão com a cultura daquele tempo, que emerge uma original reelaboração do anúncio evangélico” (n. 11).
Isto posto, o Santo Padre fala do paradoxo dos nossos dias em que há, de um lado, modos de ateísmo ou indiferenças em relação à fé e, de outro, uma grande busca pelo Sagrado ou o Transcendente (com o nome que tem nas diversas culturas e religiões). Ante este fenômeno bivalente, somos chamados – e, de um modo especial, os sacerdotes – a conhecer Cristo encarnado, ou seja, um Deus que se fez homem por amor de nós, e não um Jesus desvinculado da história humana com suas vicissitudes. Ora, a literatura pode, no entender de Francisco, ajudar nesta oferta àqueles que nos procuram (n. 14-15). “Todos devemos estar atentos para nunca perder de vista a ‘carne’ de Jesus Cristo: aquela carne feita de paixões, emoções, sentimentos, histórias concretas, de mãos que tocam e curam, de olhares que libertam e encorajam, de hospitalidade, perdão, indignação, coragem, intrepidez; numa palavra, de amor” (n. 14). Ademais, há, nos nossos dias, cientistas que demonstram o valor da leitura e o quanto ela é capaz de fazer o ser humano crescer no seu modo de ser e de agir (cf. n. 16-19). Cabe, aqui, por oportuno, indagar: Qual é a qualidade das formações que transmitimos aos que temos contato em situações diversas em nossas homilias, conversas, aulas, escritos etc.? (cf. n. 21 da Carta em comento).
A literatura – sempre no pensamento do Santo Padre – faz também com que cada um de nós, na leitura, “ouça” a voz do outro. Com outras palavras, quando leio, tenho de tentar ouvir o autor e entendê-lo. Só assim posso, de fato, me beneficiar da leitura feita. “Não esqueçamos o quanto é perigoso deixar de ouvir a voz do outro que nos interpela! Caímos imediatamente no isolamento, entramos numa espécie de surdez ‘espiritual’, que também afeta negativamente a nossa relação conosco próprios e com Deus, por mais teologia ou psicologia que tenhamos conseguido estudar” (n. 20). No fundo, dos grandes problemas de fé, há uma questão de falta de sensibilidade humana para com aquilo que o próprio ser humano produz e oferece, não só com a literatura, mas também com a poesia (cf. n. 20-22).
Sim, segundo Karl Rahner, afamado teólogo alemão, a poesia – assim como a Palavra de Deus – nos conduz ao Infinito. “Para o cristão, a Palavra é Deus, e todas as palavras humanas mostram traços de uma intrínseca saudade de Deus, tendendo para essa Palavra. Pode dizer-se que a palavra verdadeiramente poética participa analogicamente da Palavra de Deus, tal como a Carta aos Hebreus no-la apresenta de forma inovadora (cf. Hb 4,12-13)” (n. 24; cf. n. 44). Importa, assim, que o futuro sacerdote se volte para a literatura: “Na literatura, entram em jogo questões de forma de expressão e de sentido. Ela representa, portanto, uma espécie de ginásio de discernimento, que aguça as capacidades sapienciais de escrutínio interior e exterior do futuro sacerdote. O lugar onde se abre esta via de acesso à própria verdade é a interioridade do leitor, diretamente envolvido no processo de leitura. Aqui se descortina o cenário do discernimento espiritual pessoal, onde não faltarão angústias e até crises” (n. 26).
O Papa vê aí um paralelo com as desolações que Santo Inácio de Loyola aponta. Nas pessoas que experimentam algo mau ao ler, pode haver uma ação do bom espírito remordendo-lhes a consciência e estimulando-a ao arrependimento. Ler é, então, um ato de discernimento em um jogo que está ocorrendo, jogo no qual, em última análise, se acham em questão a salvação ou a perdição eterna de quem lê. Ele participa da leitura, ou seja, questiona o texto e deixa-se também questionar por ele (cf. n. 23-29). A literatura leva, “em suma, a fazer eficazmente a experiência da vida” (n. 30), a ampliar os horizontes como aquela semente que necessita cair em terras profundas (cf. Mt 13,18-23). É necessário, depois de ler um texto, parar a fim de, sem pressa, prestar atenção e digerir o que foi lido. É, por analogia, aquilo que vários santos ou místicos chamam de ruminatio, e poderíamos interpretar, à luz do processo fisiológico de alguns animais, como um mastigar e remastigar, calma e pacientemente, até que o alimento (no caso, espiritual ou interior) esteja pronto para a sadia digestão (cf. 30-33).
Quem muito lê aprende a ver o mundo com o olhar do outro, do próximo, e não apenas com o seu. Isto é grandioso demais. Amplia os nossos horizontes. “A maravilhosa diversidade do ser humano e a pluralidade diacrônica e sincrônica das culturas e dos saberes configuram-se, na literatura, numa linguagem capaz de respeitar e exprimir a sua variedade, e, ao mesmo tempo, traduzem-se numa gramática simbólica de sentido que as torna inteligíveis para nós, porque partilhadas, não estranhas. A originalidade da palavra literária consiste no fato de exprimir e transmitir a riqueza da experiência, sem a objetivar na representação descritiva do conhecimento analítico ou no exame normativo do juízo crítico, mas enquanto conteúdo de um esforço expressivo e interpretativo para dar sentido à experiência em questão” (n. 35). Embora cada um veja ou interprete a seu modo o texto lido, a literatura não pode ser tida como relativista, uma vez que não nos priva de critérios de valores, mas os amplia. “A representação simbólica do bem e do mal, do verdadeiro e do falso, como dimensões que na literatura tomam a forma de existências individuais e de acontecimentos históricos coletivos, não neutraliza o juízo moral, mas impede-o de se tornar cego ou superficialmente condenatório. Pergunta-nos Jesus: ‘Porque reparas no argueiro que está na vista do teu irmão, e não vês a trave que está na tua vista?’ (Mt 7,3)” (n. 38). Ao nos defrontarmos com os limites dos outros (talvez, dos personagens de uma história fictícia), defrontamo-nos com as nossas próprias misérias e, com isso, abrimo-nos mais e melhor à ação do Espírito Santo e da Graça divina em nós (cf. 34-40). Na nossa pequenez, descobrimos a grandeza e a beleza da ação de Deus.
Do mesmo modo como iniciou a Carta, o Santo Padre, com muita lógica, retoma o seu propósito, nos parágrafos finais, ao dizer que o seu objetivo, ao escrever, é o de relembrar o quanto “a literatura ajuda o leitor a quebrar os ídolos das linguagens autorreferenciais, falsamente autossuficientes, estaticamente convencionais, que por vezes correm o risco de contaminar até o nosso discurso eclesial, aprisionando a liberdade da Palavra. A palavra literária é uma palavra que põe a linguagem em movimento, liberta-a e purifica-a; abre-a, por fim, às suas ulteriores possibilidades expressivas e exploratórias, torna-a hospitaleira à Palavra que vem habitar na palavra humana, não quando se entende a si mesma como conhecimento já pleno, definitivo e completo, mas quando se torna vigília de escuta e de espera d’Aquele que vem renovar todas as coisas (cf. Ap 21,5)” (n. 42). Recordando Adão, que dá nome aos seres e às coisas, por uma tarefa divina (cf. Gn 2,19-20), após reconhecer a própria realidade e o sentido da existência de outros seres, o sacerdote, sem deixar sua condição humana, também se faz ponte entre a criação e o Verbo feito carne por amor de nós (cf. n. 43).
Assim o Santo Padre conclui o documento: “A afinidade entre o sacerdote e o poeta manifesta-se assim nesta misteriosa e indissolúvel união sacramental entre a Palavra divina e a palavra humana, dando vida a um ministério que se torna serviço cheio de escuta e compaixão, a um carisma que se traduz em responsabilidade, e a uma visão do verdadeiro e do bem que se abre como beleza. Não podemos renunciar à escuta das palavras que nos deixou o poeta Paul Celan: «Quem realmente aprende a ver, aproxima-se do invisível»”.
Ao propor, de modo bastante resumido, o conteúdo da Carta do Papa Francisco sobre a importância da literatura na formação sacerdotal, não desejo substituir sua apreciação, na íntegra, pela leitura deste artigo, mas, ao contrário, fomentar em todos os interessados – e de um modo muito particular nos formadores e formandos de nossos seminários e demais casas de formação – a atenção ao novo documento do Santo Padre.
Faço sinceros votos de que tenha a Carta seu lugar na Igreja e seja, de fato, levada a sério. Sua aplicação será de grande valor aos nossos queridos seminaristas.
Orani João, Cardeal Tempesta, O. Cist.
Arcebispo Metropolitano de São Sebastião do Rio de Janeiro, RJ
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