AS MUDANÇAS ESTABELECIDAS PARA O OPUS DEI NÃO AFETAM O SEU CARISMA

 

(Dedico este texto a dois amigos pertencentes à Obra, um é sacerdote e o outro é leigo).

As recentes mudanças que o Santo Padre, o Papa Francisco, dentro da reforma da Cúria Romana, fez no Opus Dei, única Prelazia pessoal existente na Igreja por desejo de São João Paulo II (2005), na Constituição Apostólica Ut sit, não afetam, de modo algum, o carisma da Obra de Deus. Carisma que, aliás, o Papa quer tutelar e até diz admirar[1].

            Esta reforma serve muito mais para aclarar ou retocar um ou outro ponto do que alterá-los de modo assaz significativo. Como quer que seja, ela pode afetar algumas pessoas, de um modo especial, aquelas que, por ora, ainda não se sentem aptas a distinguir o essencial e o acidental na Igreja.

            Visando, pois, de modo sereno, ponderado e esclarecedor, ajudar os interessados na verdade acima de todo e qualquer comentário enviesado, seguem três artigos que vemos como oportunos para o momento. Dois deles são traduzidos e transcritos, com a devida autorização: um da revista Omnes e outro da revista Exaudi.

O terceiro é de nossa autoria. Ele, como que resume, em estilo popular, o atual debate em torno do Opus Dei. Publicado em português, foi traduzido para o espanhol, por Aleteia, e ficou, na semana de 13 a 19 de agosto de 2023, em primeiro entre os dez artigos mais lidos daquele site. Foi também, no dia 28 de agosto seguinte, publicado, em italiano, e, em 6 de setembro, em inglês, por Exaudi.

Conclui este capítulo uma Carta de monsenhor Fernando Ocáriz, atual prelado do Opus Dei. Nela, demonstra – e incentiva cada um a também demonstrar – sua reverente e filial obediência ao Santo Padre, o Papa Francisco.

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1. O que mudou nas prelazias pessoais?[2]

Em 8 de agosto de 2023, o Papa Francisco promulgou um motu proprio[3] com o qual são modificadas algumas normas do Código de Direito Canônico de 1983 relativas às prelazias pessoais. O que muda nessa forma canônica e o que significa a reforma?

Seguindo a orientação preconizada pela Constituição Apostólica “Praedicate Evangelium”, artigo 117, com a qual se reformou a Cúria Romana, confirma-se a dependência das prelazias pessoais do Dicastério para o Clero. Cabe recordar que desde a lei que regulava a Cúria Romana em 1967 (Constituição Apostólica “Regimini Ecclesiae Universae”, de São Paulo VI, artigo 49, § 1) até a recente reforma da Cúria Romana (19 de março de 2022), as prelazias dependiam do Dicastério para os Bispos.

As principais novidades deste motu proprio são duas: dispõe que as prelazias pessoais se assemelham, sem se identificar, às associações clericais de Direito Pontifício dotadas da faculdade de incardinar[4]; e recorda que os leigos obtêm o seu pároco próprio e o seu Ordinário próprio por meio do seu domicílio e quase-domicílio. Vejamos, em suas linhas gerais, ambos os aspectos. 

Associações clericais com faculdade de incardinar

1. As associações clericais estão regulamentadas no Código de Direito Canônico (CIC) de 1983 apenas pelo cânon 302. Trata-se de um cânon muito breve, o único sobrevivente de um conjunto de cânones projetados durante algumas etapas da elaboração do Código de Direito Canônico de 1983. Este cânon diz o seguinte: “Chamam-se clericais aquelas associações de fiéis que estão sob a direção de clérigos, fazem sua o exercício da ordem sagrada e são reconhecidas como tais pela autoridade competente”[5].

Esse cânon residual não explica tudo o que são, ou queriam ser, as associações clericais. Nele, se forja um conceito técnico de associação clerical que se distingue das associações de clérigos (cân. 278). No projeto, se pensou que algumas dessas associações teriam a faculdade de incardinar clérigos, [mas] que entre os seus membros haveria fiéis leigos e que teriam, comumente, uma função de evangelização em lugares onde a Igreja ainda não estivesse presente. Eram algumas associações dotadas de um forte caráter missionário que exigia o exercício da Ordem sagrada para levar avante essa missão de evangelização. Por isso, deviam ter um caráter público na Igreja (não cabem associações que façam sua a Ordem Sagrada e sejam de natureza privada). Tendo em conta o papel do ministério ordenado, previu-se que o governo tocasse aos sacerdotes (cf. meu Comentário ao cânon 302, no Instituto Martín de Azpilicueta, Faculdade de Direito Canônico, Universidade de Navarra, Comentário Exegético ao Código de Direito Canônico, Vol. II/1, Pamplona, ​​​​terceira edição, 2002, pp. 443-445).

Passados alguns anos, determinadas associações clericais sentiram a necessidade de poder incardinar uns ou todos os seus membros, dependendo dos casos, para assegurar a estabilidade do seu carisma e a eficácia prática de suas estruturas. Para responder a esta exigência, em 11 de janeiro de 2008, o Papa Bento XVI conferiu à Congregação para o Clero o privilégio de conceder a algumas associações clericais a faculdade de incardinar os membros que o solicitem. Posteriormente, no motu proprio “Competentias quasdam decernere”, de 11 de fevereiro de 2022, estas associações clericais se incluem entre os entes incardinantes (cf. o novo cânon 265).

Atualmente, há várias associações clericais com faculdade de incardinar: algumas são muito autônomas, como a Comunidade de São Martinho (“Communauté Saint Martin”) ou a Sociedade João Maria Vianney (“Société Jean-Marie Vianney”). Ainda que, antes, já fossem associações clericais, só em 2008 receberam a faculdade de incardinar. Também se encontra entre as associações clericais a Irmandade dos Sacerdotes Operários Diocesanos (erigida como associação clerical em 2008, embora antes tivesse outra configuração jurídica).

Há três que nasceram e estão ligadas, com maior ou menor intensidade, a um movimento: a Associação clerical da Comunidade do Emanuel (2017), ligada à [própria] Comunidade do Emanuel; a associação clerical “Obra de Jesus Sumo Sacerdote” (2008), do movimento “Pro Deo et Fratribus – Famiglia di Maria” (“Opera di Gesù Sommo Sacerdote” Pro Deo et Fratribus – Famiglia di Maria, aprovada em 2002), e a Fraternidade Missionária de Santo Egídio, aprovada em 2019 (atualmente o Moderador é um sacerdote: cf. Anuário Pontifício 2023, p. 1692; antes, era um Bispo, Mons. Vincenzo Paglia: cf. Anuário Pontifício 2021, p. 1657) . Nestes casos, ao Moderador ou Responsável são atribuídas as faculdades de Ordinário, como faz este motu proprio (artigos 1º e 2º).

Atenção pastoral aos leigos

2. Outra novidade deste motu proprio é que se confirma que aos fiéis leigos ligados às prelazias, se aplica o cânon 107, § 1: “Tanto por domicílio como pelo quase-domicílio, corresponde a cada pessoa o seu pároco e o Ordinário”, também a quem pertence às prelazias e a outros entes, hierárquicos ou agregativos (em contrapartida, esta disposição tem uma relevância pequena no que diz respeito aos clérigos: o vínculo jurídico fundamental do clérigo é a incardinação).

  Neste ponto, o novo cânon torna explícito o que já existia e se aplicava. Os leigos da prelazia eram e são fiéis também das dioceses às quais pertencem por seu domicílio ou quase-domicílio[6]. Trata-se de uma disposição de caráter geral cuja finalidade é garantir que cada fiel tenha a quem recorrer para receber os sacramentos e a Palavra de Deus.

Com efeito, em seu modo de atender pastoralmente aos fiéis, a Igreja quer garantir que cada fiel tenha um pároco próprio e um Ordinário.

O primeiro critério empregado é muito simples: o domicílio, quer dizer, o local de residência habitual. Como a organização da Igreja segue fundamentalmente um critério territorial, prevê-se que, pela residência habitual, o fiel tem a quem recorrer: pertence a uma paróquia ou a uma diocese.

É de grande interesse que a Igreja e o seu direito se preocupem em atribuir não apenas um Ordinário, mas que o fiel possa ter vários Ordinários e párocos próprios ao mesmo tempo, conforme o local de residência (entra em jogo uma residência menos estável: o quase-domicílio, que se adquire com três meses de residência: cf. cânon 102, § 2). É ainda possível que uma pessoa tenha um Ordinário ou pároco com base em critérios não territoriais (um militar terá o Ordinário do Ordinariado militar; ou, se o fiel é de uma paróquia pessoal, terá como pároco o padre à frente dessa estrutura pessoal). Todavia, esse Ordinário e pároco pessoais são somados ao Ordinário e ao pároco pelo território.

Neste âmbito, é evidente que o fiel goza de grande liberdade. Ele pode escolher para a celebração de alguns sacramentos o pároco ou o Ordinário entre as distintas possibilidades que o Direito lhe proporciona.

2. A reforma das prelazias pessoais e o Opus Dei[7] 

O Papa Francisco está cumprindo de pés juntos um dos pontos centrais do seu pontificado: levar avante uma reforma profunda do Vaticano que facilite a missão evangelizadora da Igreja. Para isso, entre muitos outros afazeres, Francisco está revendo a fundo o direito canônico (penal, processual, matrimonial, vida religiosa), pois é consciente de que um bom direito gera harmonia e unidade, confere segurança jurídica às instituições e lhes acrescenta pujança.

A recente reforma das prelazias pessoais do Código de Direito Canônico responde a este ideal. A criação das prelazias pessoais (Decreto Presbyterorum Ordinis, 10), como realidades eclesiásticas para a distribuição do clero e para o cumprimento de trabalhos apostólicos peculiares, foi uma das grandes contribuições pastorais do Concílio Vaticano II e da legislação pós-conciliar, comparável à criação das pessoas jurídicas pelo direito canônico medieval, muito antes do que fizera o direito secular.

Ao dar vida às prelazias pessoais, o Concílio Vaticano II optou por incorporar à Igreja o então moderno princípio de funcionalidade, como um terceiro pilar, a título de complemento dos dois outros grandes pilares: os princípios de personalidade e de territorialidade. O princípio de funcionalidade justifica e legitima a criação de instituições eclesiásticas com o intuito de preencher uma necessidade pastoral premente, reconhecida como tal pela hierarquia da Igreja: atender cristãos perseguidos, migrantes, enfermos com doenças contagiosas, grupos sociais marginalizados, ajudar na reconstrução de uma região em guerra, ou promover a chamada universal à santidade, medula da mensagem do Vaticano II, como no caso do Opus Dei, a única prelazia pessoal existente até agora, erigida por João Paulo II há mais de quarenta anos. Nestes trabalhos específicos, por vezes, trabalharão apenas os sacerdotes, mas outras vezes, como no caso do Opus Dei, sacerdotes e leigos conjuntamente, como expressão carismática específica da unidade do Povo de Deus.

Em torno desta ideia brilhante e revolucionária, muito em sintonia com o que já estava acontecendo no direito secular, logo surgiu um apaixonado debate canônico a respeito da natureza jurídica das prelazias pessoais, já que o seu nascimento exigia reinterpretar, enriquecer e avançar na compreensão dos dualismos territorialidade-personalidade, carisma-hierarquia, sacerdócio-laicato com os quais tradicionalmente se vinha atuando no direito da Igreja.

Deste modo, alguns canonistas tenderam a considerar as prelazias como circunscrições pastorais quase-diocesanas, assemelháveis, porém não identificáveis, às Igrejas particulares[8], enfatizando, assim, o seu caráter hierárquico. Outros idealizaram as prelazias pessoais como entes de base associativa para uma melhor formação, incardinação e distribuição do clero a serviço das Igrejas particulares e, portanto, assemelháveis, mas não identificáveis, às associações clericais. Procuraram, assim, realçar o elemento associativo e clerical das prelazias pessoais. Infelizmente, a falta de consenso entre os canonistas sobre este ponto central restringiu o processo de criação de novas prelazias pessoais a serviço de determinados trabalhos pastorais na Igreja.

Com a nova regulamentação das prelazias, o Papa Francisco elucidou algumas questões ou destacou outras já conhecidas e aceitas pela canonística. A nova norma deixa muito claro que as prelazias não são estruturas hierárquicas quase-diocesanas e, portanto, não podem se assemelhar às Igrejas particulares. Ao contrário do que opinavam alguns canonistas, a reforma assemelha expressamente as prelazias às associações públicas clericais de direito pontifício com faculdade de incardinar clérigos. Este é, talvez, o ponto central da reforma. Para enfatizar esta semelhança, a reforma estabelece também que o prelado, mais que o Ordinário da prelazia, como assinalaram Paulo VI e João Paulo II, seja um moderador com faculdades jurisdicionais para incardinar sacerdotes, erigir um seminário e nortear o seu ministério a serviço da finalidade da prelazia. Em contrapartida, se recorda e se acentua que os leigos que trabalham a serviço da prelazia são fiéis das suas dioceses e continuarão fazendo parte delas. Este ponto era e é indiscutível[9].

Parece-me importante ressaltar que, no direito, assemelhar não é identificar[10], mas buscar um primum analogatum[11], ou um conceito primário que sirva de referência a quem interpreta e aplica o direito. Pode-se assemelhar, para efeitos legais, um residente num país com dois anos de residência a um cidadão daquele país, mas um residente não é um cidadão nativo. Pode-se assemelhar, para efeitos legais, uma união de fato ao casamento civil, entretanto, não são identificáveis. Pode-se e deve-se, para efeitos legais, equiparar um filho biológico e um filho adotivo, todavia, não são identificáveis. A semelhança é, pois, uma técnica legislativa que evita repetições desnecessárias, facilita a interpretação e permite o desenvolvimento ordenado de instituições nascentes. No entanto, identificar plenamente os elementos assemelhados constitui um erro que acaba desnaturalizando o elemento mais frágil.

Dizer que as prelazias são assemelháveis a certas associações clericais mostra, em última análise, que não são constitutivamente associações clericais, mas, sim, algo a mais. É que, para captar a natureza das prelazias pessoais, há de se valer do princípio de funcionalidade, e não só do princípio associativo[12]. É a missão, o trabalho específico para a qual está orientada, que determina a sua forma de se organizar.

Muitos dos serviços ou trabalhos apostólicos peculiares das prelazias serão mais carismáticos do que hierárquicos (é o caso do Opus Dei e Francisco assim o recordou recentemente) ao contrário de outras instituições. Tudo se encaixa ou deveria se encaixar. Mas não devemos nos esquecer de que toda realidade eclesial é, com diferentes intensidades, as duas coisas. O hierárquico requer a unidade na diversidade, o carismático, em contrapartida, a diversidade na unidade.

É exatamente aqui que se ajusta a presença dos leigos. É óbvio que não há lugar para prelazias pessoais sem clero. Mas não se pode fechar a porta à incorporação de leigos às prelazias pessoais quando isto for uma exigência do carisma, como ocorre no caso da Obra. O Opus Dei é uma família formada por leigos e sacerdotes, mulheres e homens, casados ​​e solteiros, ricos e pobres. O princípio de funcionalidade (a missão específica) complementa o princípio de territorialidade e determina a sua forma de se organizar.

Quando João Paulo II erigiu o Opus Dei como prelazia pessoal, reconheceu o carisma dado por Deus a São Josemaría para promover a chamada universal à santidade no meio do mundo e o elevou à categoria de tarefa imperiosa na Igreja, por coincidir com a mensagem central do Concílio Vaticano II. Por isso, criou a primeira prelazia, composta por sacerdotes e leigos, alguns incardinados e outros incorporados[13], sempre a serviço de suas respetivas dioceses. Com esta aprovação, também deu resposta à aspiração do fundador: encontrar uma fórmula jurídica adequada ao carisma específico do Opus Dei.

Que essa prelazia seja equiparável a certas associações clericais é, repito, uma técnica jurídica totalmente aceitável. Mas uma interpretação clerical, clericalista[14], se me permitem, da reforma que não só assemelhasse, mas também identificasse a prelazia com uma associação clerical, desnaturalizaria o carisma essencialmente secular da única prelazia pessoal já criada há quarenta anos pela Santa Sé. De resto, uma excessiva clericalização da reforma ou um excesso de academicismo que fechasse os olhos para uma realidade pastoral já existente, contrariaria o espírito evangelizador e sinodal que o Papa Francisco vem estimulando desde o início do seu pontificado.

3. Opus Dei: as recentes mudanças afetam a sua essência?[15] 

Alguns meios de comunicação exibiram notícias alusivas às recentes mudanças fixadas pelo Papa Francisco ao Opus Dei. Elas, na verdade, não afetam – na nossa singela análise – a essência[16] dessa instituição católica que tanto bem faz ao povo de Deus.

Em suma, “o Opus Dei (Obra de Deus, em latim) é uma instituição hierárquica da Igreja Católica – uma Prelazia Pessoal –, que tem como finalidade contribuir para a missão evangelizadora da Igreja. Concretamente, pretende difundir uma profunda tomada de consciência da chamada universal à santidade e do valor santificador do trabalho cotidiano. O Opus Dei foi fundado por São Josemaría Escrivá em 2 de outubro de 1928” (https://opusdei.org/pt-br). Isso posto, aclaremos dois pontos importantes:

1) O Santo Padre, na condição de autêntico sucessor de Pedro (cf. Mt 16,17-19; Jo 21,15-17; Lc 22,31-32), tomou, no caso, legítimas decisões disciplinares, segundo ensina o Catecismo da Igreja Católica, n. 553. Por isso, sabiamente, monsenhor Fernando Ocáriz, atual prelado do Opus Dei, disse na sua Mensagem, de 10/08/2023, o seguinte: “Escrevo estas palavras para partilhar com vocês que acolhemos com sincera obediência filial estas disposições do Santo Padre, e para pedir que também nisto todas e todos permaneçamos muito unidos”.

2) O Papa não agiu, como se disse, para prejudicar a Obra. Afinal, foi ele mesmo quem declarou: “Sou um grande amigo do Opus Dei, amo muito o povo do Opus Dei e eles trabalham bem na Igreja. O bem que eles fazem é muito grande” (ACI Digital, 21/12/2022, on-line).

          Chegamos, por fim, às alardeadas mudanças. Elas, como dito, não afetam a essência da Obra. Isso é o que tentaremos demonstrar, aqui, em dois tópicos.

A) O Papa pelo motu proprio “Ad carisma tuendum” (Para tutelar o carisma), de 14/07/2023, adapta a Prelazia Pessoal da Santa Cruz e Opus Dei à reforma geral da Cúria Romana instituída pela Constituição Apostólica Prædicate Evangelium, de 19/03/2022, artigo 117. Vale a pena explicar que uma Prelazia pessoal – a do Opus Dei é a única – não se limita a um território – senão seria Prelazia territorial –, mas chega até onde existam fiéis leigos comuns e sacerdotes a ela vinculados. Isso o definiu o Papa São João Paulo II, por meio da Constituição Apostólica Ut sit, de 28/11/1982, que permanece válida. Não foi abolida por Francisco.

As novidades a ela fixadas são: O prelado não será mais bispo, mas sacerdote. Ora, faz parte da natureza de uma Prelazia ter à frente um prelado com todas as suas atribuições prelatícias (cf. Código de Direito Canônico, cân. 295 § 1 e § 2, agora aclarado com a nova redação de 08/08/2023). É secundário ser ele bispo ou padre. O beato Álvaro del Portillo, no início da Prelazia, foi prelado sem ser bispo. O mesmo se dá hoje com monsenhor Fernando Ocáriz. Por conseguinte, a Prelazia passa a responder, agora, ao Dicastério para o Clero (o prelado é padre) – com a apresentação de relatórios anuais – e não mais ao Dicastério dos Bispos – com os relatórios quinquenais que entregava.

            B) Em 08/08/2023, como vimos, o Santo Padre deu nova redação aos cânones 295 e 296 do Código de Direito Canônico. O primeiro, conforme citado, aclara as funções de uma Prelazia Pessoal e do seu prelado, já o segundo trata dos fiéis leigos vinculados à Prelazia. Está assim redigido: “Os leigos podem dedicar-se às obras apostólicas de uma Prelazia pessoal mediante convenções estipuladas com a própria Prelazia; o método desta cooperação orgânica e os principais deveres e direitos relacionados a ela são determinados com precisão nos estatutos”.

Todavia, este cânon se refere também ao 107 que assim reza no § 1: “Tanto pelo domicílio, como pelo quase-domicílio, cada um adquire o pároco ou Ordinário próprio”. Ora, esta alteração pouco atinge os clérigos, pois seu vínculo jurídico é a incardinação à Prelazia. Quanto aos leigos, elucida melhor o que, na prática, já existe: os fiéis da Prelazia eram – e continuarão a ser – também membros da sua Diocese, isto é, de onde moram (domicílio) ou de onde têm pelo menos 3 meses de residência e trazem a intenção de ali ficar (quase-domicilio). Cf. Código de Direito Canônico, cân. 102 § 1-3.

       Possa este modesto texto ajudar a aclarar, de modo conciso, as dúvidas sobre as mudanças, assaz acidentais, mas elucidativas, ocorridas, há poucos dias, com o Opus Dei.

            Refletindo brevemente...

            Vê-se, pelos textos precedentes, que as pequenas alterações canônicas com relação à Prelazia pessoal do Opus Dei em nada afetam o seu carisma. Carisma que o Santo Padre, o Papa Francisco, afirmou querer tutelar, guardar, preservar. Afinal, diz o Pontífice: “Sou um grande amigo do Opus Dei, amo muito o povo do Opus Dei e eles trabalham bem na Igreja. O bem que eles fazem é muito grande” (ACI Digital, 21/12/2022, on-line).

            De concreto, a mudança maior – e para o bem – se dá com relação ao prelado. Ele não será mais bispo, mas sacerdote que atua “como Moderador[17], dotado das faculdades de Ordinário”[18]. Poderá, assim, dedicar-se exclusivamente à Obra.

         A esta altura, alguém poderia contra argumentar que o prelado sempre se dedicou à Obra de modo exclusivo. Sim, mas, enquanto bispo, ele poderia – ao menos em tese – ser chamado, para maior bem da Igreja, a assumir uma diocese. Por que não? – Agora, com a mudança canônica, esse “risco” está afastado.

            Quanto aos leigos, o se deu foi o aclaramento e a confirmação do que, na prática, já existia: Eles fazem parte da Prelazia pessoal do Opus Dei, mas também são – como sempre foram – membros da própria Diocese onde residem. Para a recepção dos sacramentos, podem, portanto, à livre escolha, recorrer a um sacerdote da Obra ou da sua Diocese.

            Por fim, cabe notar que a Prelazia pessoal do Opus Dei continua como sempre foi. Isto é, não se tornou uma associação clerical. Com efeito, “dizer que as prelazias são assemelháveis a certas associações clericais mostra, em última análise, que não são constitutivamente associações clericais, mas, sim, algo a mais” (Rafael Domingo Oslé. Texto 2 deste capítulo), ou seja, continua a ser uma Prelazia pessoal, com seu carisma específico, como quis o Papa São João Paulo II na Constituição apostólica Ut sit, de 28 de novembro de 1982. Constituição que o Papa Francisco não aboliu, mas apenas levemente retocou.

            Uma Carta do Prelado[19]

            Queridíssimos, que Jesus guarde as minhas filhas e filhos!

Motu proprio do Papa Francisco Ad charisma tuendum foi publicado esta manhã, modificando alguns artigos da Constituição Apostólica Ut sit, para adaptá-los às normas estabelecidas pela recente Constituição Apostólica Praedicate Evangelium, sobre a Cúria Romana. Trata-se de uma concretização da decisão do Santo Padre de enquadrar a figura das prelazias pessoais no Dicastério do Clero, que aceitamos filialmente.

O Santo Padre anima-nos a focar a nossa atenção no dom que Deus entregou a São Josemaría, para o vivermos plenamente.

Exorta-nos a cuidar do carisma do Opus Dei para “promover a ação evangelizadora realizada por seus membros” e, deste modo, “difundir o chamado à santidade no mundo, através da santificação do trabalho e das ocupações familiares e sociais (Motu proprio Ad charisma tuendum). Gostaria que este convite do Santo Padre tivesse uma forte ressonância em cada um de nós. É uma oportunidade para aprofundar no espírito que o Senhor inspirou em nosso fundador e para compartilhar este espírito com muitas pessoas no ambiente familiar, profissional e social.

Quanto às disposições do Motu proprio sobre a figura do prelado, repito o que indiquei em outras ocasiões: agradecemos a Deus pelos frutos da comunhão eclesial que significaram os episcopados do B. Álvaro e de Dom Javier. Ao mesmo tempo, a ordenação episcopal do prelado não era e não é necessária para guiar o Opus Dei. A vontade do Papa de realçar agora a dimensão carismática da Obra convida-nos a reforçar o ambiente de família, de afeto e confiança: o prelado deve ser um guia, mas, acima de tudo, um pai.

Com estas linhas, peço também que rezem pelo trabalho que o Papa Francisco nos pediu para fazer no sentido de adequar o direito particular da Prelazia às indicações do Motu proprio Ad charisma tuendum, permanecendo – como ele mesmo nos diz – fiéis ao carisma.

Com todo o carinho, vos abençoa,

O Padre

(Extraído do livro de Vanderlei de Lima. Opus Dei: o que dizem ser e o que realmente é. São Paulo: Ixtlan, 2023, pp. 21-35).


[1] Ver o texto 3 deste capítulo.

[2] Luís Filipe Navarro, autor deste artigo, é Reitor da Pontifícia Universidade da Santa Cruz, Professor de Direito da Pessoa, Consultor do Dicastério para os Leigos, a Família e a Vida.

https://omnesmag.com/actualidad/que-ha-cambiado-en-las-prelaturas-personales/, acesso em 23/08/2023.

[3] Do latim, De própria iniciativa. É – ao lado das encíclicas, bulas, constituições apostólicas etc. – uma das modalidades de documento pontifício.

[4] Escreve o Pe. Jesús Hortal, SJ, em nota ao cânon 265, o que segue: “Incardinação provém do latim in (em) e cardo (gonzo, dobradiça). Significa, pois, etimologicamente, o ato de girar em torno de um eixo fixo. Canonicamente, é o ato mediante o qual, quer por disposição do direito, quer por determinação do superior legítimo, um clérigo fica absoluta e definitivamente incorporado a uma Igreja particular, a uma Prelazia Pessoal, a um Instituto de vida consagrada ou a uma sociedade com essa faculdade” (Código de Direito Canônico. São Paulo: Loyola, 1983, p. 118-119).

[5] Na tradução deste e de outros cânones aqui citados, seguimos o original espanhol cotejando-o com a versão publicada no Brasil apenas para confirmar o sentido preciso da tradução.

[6] Eis o que Margarida Hulshof, escritora católica e autora de uma obra em dois volumes que foi considerada por Dom Estêvão Bettencourt, OSB, como “uma pequena enciclopédia popular sobre a temática da Igreja”, escrevia, em 2009, sobre o Opus Dei: “Juridicamente, trata-se de uma ‘Prelazia pessoal’ da Igreja. As prelazias pessoais são instituições semelhantes às dioceses em sua organização, mas com algumas diferenças, como o fato de não possuir limites geográficos, continuando os seus fiéis a pertencer também às Igrejas locais (dioceses) onde têm o seu domicílio. À frente da Prelazia, encontra-se um Prelado, nomeado pelo Papa, que pode ser um Bispo ou um sacerdote” (A Noiva do Cordeiro: questões sobre a Igreja. Vol. 2. Belo Horizonte: O Lutador, 2009, p. 212).

[7] Rafael Domingo Oslé é catedrático da Universidade de Navarra.

https://www.exaudi.org/es/la-reforma-de-las-prelaturas-personales-y-el-opus-dei/.

[8] Leia-se: Dioceses.

[9] Ver nota 12 deste livro.

[10] No nosso modesto entendimento, esta é a chave para se compreender toda mudança feita pelo Santo Padre, o Papa Francisco, conforme o Prof. Rafael Domingo Oslé, autor deste artigo, deixa muito claro no parágrafo anterior a este que se inicia pelas seguintes palavras: “Com a nova regulamentação das prelazias”.

[11] Esta expressão latina pode ser entendida como um princípio de analogia. Ora, se analogia consiste em encontrar relação de semelhança entre coisas ou fatos distintos, no Direito Canônico, quer dizer que uma norma aplicada à realidade A (uma Associação pública clerical de direito pontifício) pode, por semelhança, mas não por identidade ontológica (em si mesma), ser aplicada também, em grande parte, à realidade B (uma Prelazia pessoal) por esta lhe ser semelhante, mas nunca a ela idêntica.

[12] Como o autor deixará aclarado a seguir, aqui não importa, de princípio, quem é o sujeito em questão, mas, sim, a razão para a qual ele se uniu a outros.

[13] Lê-se no site do Opus Dei o que segue: “Os sacerdotes seculares incardinados em uma diocese não podem pertencer à Prelazia, mas podem fazer parte da Sociedade Sacerdotal da Santa Cruz, uma associação indissoluvelmente unida à Prelazia. Ao se incorporarem à Sociedade da Santa Cruz, a sua condição diocesana não se modifica: eles continuam pertencendo plenamente ao clero da sua própria diocese e dependendo do seu Bispo, como antes. Esses sacerdotes se comprometem a procurar a santidade no exercício do trabalho sacerdotal, segundo o espírito do Opus Dei, e se empenham de forma especial em viver profundamente unidos ao seu próprio Bispo e aos demais sacerdotes” (https://opusdei.org/pt-br/article/os-sacerdotes-seculares-podem-pertencer-ao-opus-dei/).

[14] Clericalismo que, aliás, o Papa Francisco combate com destemor. Na Carta ao Presidente da Pontifícia Comissão para a América Latina, o Cardeal Marc Ouellet, sobre o papel do leigo na vida pública, com data de 16/03/2016, o Papa pede uma especial atenção ao clericalismo, “fruto de uma má vivência da eclesiologia exposta pelo Vaticano II”. E continua: “Esta atitude não só anula a personalidade dos cristãos, mas também gera uma tendência a diminuir e desvalorizar a graça batismal que o Espírito Santo colocou no coração das pessoas. O clericalismo anula a personalidade dos cristãos e leva a uma ‘homologação’ do laicato. Tratando-o como mandatário, limita as diversas iniciativas e esforços e, ousaria dizer, as audácias necessárias para poder levar a Boa-Nova do Evangelho a todos os âmbitos da atividade social e sobretudo política”. Além disso, “o clericalismo longe de impulsionar as distintas contribuições, propostas, pouco a pouco vai apagando o fogo profético que a Igreja toda está chamada a dar testemunho no coração de seus povos. O clericalismo esquece que a visibilidade e a sacramentalidade da Igreja pertencem a todo o povo de Deus (cf. LG 9-14) e não só a poucos eleitos e iluminados” (ACI Digital, 26/03/2016, on-line).

[15] Texto elaborado pelo autor deste livro e publicado no site Aleteia e em alguns jornais impressos.

[16] Uma semanas depois deste nosso texto publicado, o prelado do Opus Deis, monsenhor Fernando Ocáriz, em entrevista a El País Semanal, na reportagem intitulada “A Opus Dei, na encruzilhada”, de 26/08/2023, tratou das reformas do Papa Francisco na prelazia pessoal. Ao responder se o Santo Padre estaria decidido a dissolver a “especificidade” da Opus Dei, Ocáriz disse, confirmando o que pensávamos e afirmamos de público: “A especificidade do Opus Dei descansa em seu carisma ou espírito, não na sua roupagem jurídica. No seu núcleo, está o chamado universal à santidade através do trabalho e das realidades ordinárias da vida” (“Opus Dei não quer ser exceção, diz o prelado”. ACI Digital, 28/08/2023, on-line).

[17] Isto é, governa de fato com autoridade executiva (cf. comentário do Pe. Jesús Hortal, SJ, ao cânon 317 do Código de Direito Canônico vigente. São Paulo: Loyola, 1983, p. 146).

[18] O que, por analogia, o torna equiparável, em certos quesitos, a um bispo.

https://www.vatican.va/content/francesco/it/motu_proprio/documents/20230808-motu-proprio-prelature-personali.html, acesso em: 24/08/2023.

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