FALA DA CEPDF/CNBB NA 59ª ASSEMBLÉIA GERAL DA CNBB, 25 a 29 abril 2022 (virtual)
Saudação
a todos os irmãos bispos participantes desta Assembleia. Saúdo Dom Walmor, presidente,
e os demais membros da direção da CNBB. Saúdo o Sr. Núncio e todos os
participantes, nas suas várias funções ministeriais e serviços. Em nome da
CEPDF agradeço o espaço disponibilizado para esta fala e a atenção que
dispensarem a esta exposição.
Nossa Comissão, em sua primeira reunião no dia 04-05/11/2019, traçou um cronograma de atividades. Com a chegada da Pandemia, em fevereiro de 2020, ficou prejudicada. Porém, conseguimos realizar reuniões on-line. Elaboramos, com a ajuda dos peritos, três subsídios doutrinais: “Vida dom e Compromisso I: Fé cristã e opção preferencial pelos pobres” e “Vida dom e compromisso II: Fé cristã e aborto”, ambos publicados em 2021. E, no início de 2020, o subsídio doutrinal n. 11, sobre “O Magistério dos Bispos”. Junto com isto, se fez o trabalho corriqueiro da Comissão de analisar textos para publicação.
No dia 02 de fevereiro de 2022, realizamos uma reunião on-line da Comissão com os peritos, cujo tema foi “Interpelações à fé cristã e desafios teológicos-pastorais, frente à pandemia e a proposta de uma Igreja Sinodal”. Aqui segue uma partilha de algumas das questões que foram contempladas nesse encontro, muito rico aliás, e outras preocupações da CEPDF.
Primeiramente somos convidados a ler a pandemia na perspectiva dos sinais dos tempos na linha do Vaticano II (cf. GS 4). A Pandemia muda nosso modo de vida, questiona os sistemas econômico, de saúde e sociais e expõe a nossa “fragilidade como criaturas”. Nós, como Igreja, temos conseguido dar as razões de nossa esperança a partir da fé, em meio à crise?
Nesta
Pandemia, o espaço digital, apesar de muitos não terem acesso a eles, tornou-se
mais ainda, lugar antropológico, ético, social e cada vez mais religioso. Lugar
de cultivar a fé, evangelizar e divulgar a religião. A internet se torna lugar
de comunidades virtuais e “locus” da
ética teológica. O saber teológico, por sua vez, não pode estar desconectado da
história e deve responder às situações atuais.
A
ciberteologia é entendida como novo
campo teológico para “pensar a fé cristã nos tempos da rede”. Dessa experiência
religiosa surgem questões políticas, teológicas, morais etc. Pessoas isoladas
ou grupos religiosos passaram a ocupar, por um processo de midiatização, um
espaço ostensivo nas instâncias de poder digitais. A migração da prática
religiosa para o mundo virtual, que exige mudança de estratégia pastoral. Um
desafio!
Evidenciou-se, com a pandemia, os grupos católicos conservadores, radicais, reacionários, no interior da Igreja do Brasil. São tomados pelo tradicionalismo fundamentalista. São empenhados no combate ao Concílio Vaticano II, à reflexão teológica pós-conciliar e ao Pontificado do Papa Francisco. Estes grupos estão minando nossas comunidades e cooptando nossas lideranças pastorais, já fragilizadas. Se arvoram em donos da verdade e instrumentalizam pronunciamentos dos bispos. E, assim, proliferam os pequenos cismas. Como reagir adequadamente frente aos vários “magistérios paralelos” existentes?
Encontramos grupos altamente midiatizados que usam todo o potencial disponível, que se apresentam como defensores da “ortodoxia católica”, da tradição, da moral e da liturgia. A pandemia fez pensar no valor da vida. Mas também colocou a questão da finitude, da morte. Pergunta: a Igreja está sabendo falar da escatologia cristã neste tempo de luto? É tempo de crise e de incerteza, mas também de esperança e de graça, de esvaziamento de pretensões puramente imanentes: colocam-se indagações sobre a transcendência, a eternidade (novíssimos). A fragilidade da condição humana diante da morte interpela o sentido da vida e escancara a desigualdade social e a lógica perversa de um sistema econômico selvagem e desumanizador em uma “cultura de morte”.
A guerra cultural em curso no Ocidente, tem chegado no Brasil com toda a força nos últimos anos, em grande parte fomentada pelo encontro (ou desencontro) entre o paradigma assim chamado “pós-moderno” e a “Tradição Judaico-Cristã”, que fundamentou grande parte da cultura e dos valores morais do país. Definitivamente estamos em uma cultura pós-cristã. Um exemplo disso é a desconstrução do paradigma do matrimônio monogâmico e da família natural, como proposto pelo cristianismo; é uma consequência direta da implementação das teorias (ideologia) de gênero, que visam a legitimação de um novo paradigma da sexualidade humana, com base no amor livre, na bissexualidade, na pansexualidade, etc.
Surgem muitas interrogações, muitas delas são
interrogações esperando de nós, “mestres na fé”, uma resposta. Algumas
respostas já foram dadas. Como
fazer perceber que a Igreja não é somente organização humana mas também divina?
O que é ser católico em tempos de pluralismo? Tempo de pessoas religiosas mas
sem religião, de muitas religiões e pouca fé, com católicos que não receberam o
Kerigma?
Há
ainda a falta de sentimento de pertença à Igreja, que cria dificuldade para se
viver a Igreja Particular (diocesaneidade), vida paroquial, etc. A questão do senso de pertença à Igreja (Igreja
Particular), nos interpela! Como
articular a pluralidade na Igreja (A Igreja nasceu plural – temos quatro Evangelhos), mantendo a unidade da fé e da
Comunidade Eclesial? Coloca-se a questão da unidade na própria Igreja, unidade
na pluralidade, que deve, porém, manter a comunhão indivisível em torno da “Regula Fidei”.
Na
complexidade da maravilhosa tecnologia do mundo atual, não podemos caracterizar
a Doutrina da Fé, como algo pertencente ao mundo das ideias, questões meramente
intelectuais; E as questões relativas à Pastoral, como pertencentes ao mundo
real. Precisamos vencer a apatia e, às vezes, desinteresse que existem em
relação aos temas sobre a fé. As questões de Fé se referem à Verdade Revelada,
da qual depende tudo o mais: “Sem fé é impossível agradar a Deus” (Hb 11,6). A
pandemia mostra-nos como, muitas vezes, deixamos adormecido e abandonado aquilo
que nutre, sustenta e dá força à nossa vida e à nossa comunidade; pode-se
perceber que a crise mundial, gerada pela pandemia da Covid-19, colapsou, acima
de tudo, todos os modelos de sociedade conhecidos até este momento, os quais
garantiam resolver todos os desafios.
Hoje
difunde-se a ideia de que estamos na era da “pós-verdade”. Isto faz parecer que,
diante das ideologias atuais, a fé não tem mais contribuição alguma a dar. A fé
cristã é histórica e se nutre da Verdade Revelada. Como anunciar a verdade de
Cristo em tempos de relativismo e Fake
News? Pergunta-se: como dialogar com a realidade que nos cerca sem perder a
Fé?
No
entanto, a fé é o bem mais precioso, porque a verdade é elemento fundamental
para a vida do ser humano. Daí deriva que a preocupação para que a fé não se
corrompa, mas seja claramente explicitada, deve ser considerada tão ou mais
necessária que a saúde do corpo. Temos que esclarecer o que é ideológico e o
que é da fé católica, o que é comunismo e o que é Doutrina Social da Igreja. Ter
uma fé clara (segundo o Credo da Igreja) não pode ser taxado de exagero, falta
de espírito ecumênico. O que a Igreja crê está acima das ideologias da moda.
Como
na Igreja dos três primeiros séculos, estamos em uma situação de testemunho
martirial/profético, exigente, desinstalador. Não serve a opção pelo
conformismo e indiferença. A fé é um “bem comum de todos os fiéis”, a começar
dos pobres, por isso defender a fé e propô-la em toda a sua beleza, é uma obra
social a favor de todo o Povo de Deus. E isto cabe sobretudo a nós bispos, que
devemos garantir o anúncio e a transmissão da fé, de modo adequado. Sobre tudo isto,
a Igreja e os fiéis esperam de nós, além da unidade, uma Palavra de Pastores, capaz
de sustentar o testemunho do Povo de Deus e sustentar a ação evangelizadora
missionária da Igreja em meio a esta crise.
Torna-se cada vez mais claro que estamos diante de uma transformação social em curso, que vai gerar, consequentemente, uma mudança eclesial profunda; talvez, não tão positiva como gostaríamos. O momento não serve para buscarmos respostas cultivando otimismo ingênuo sobre o futuro da Igreja; ao contrário, mais do que nunca precisamos do retrato concreto da realidade (e as estatísticas estão aí), por mais amarga que seja a perspectiva.
A ausência de Deus (crise de fé) resulta diretamente numa crise antropológica. A questão que temos diante de nós, portanto, é muito mais complexa do que simplesmente buscar ou dar respostas pontuais para problemas específicos, seja do ponto de vista político, eclesial ou pastoral. Alguns são da opinião que somente um novo humanismo poderá dar respostas à profunda crise de sentido, que o ser humano contemporâneo experimenta e que o lança no poço do relativismo moral e niilismo existencial.
É necessário tomar consciência do relativismo, do laicismo e da crise de sentido dominantes na sociedade de hoje, que rejeita a Igreja e os princípios cristãos, e responder com coragem, formando cristãos adultos na fé e capazes de transmiti-la. Só permanecerá de pé a árvore que tiver raiz bem forte, ou seja, a fé. Neste quesito já temos documentos que nos indicam caminhos: Documento 107, Iniciação à vida Cristã: itinerário para formar discípulos missionários aprovado da 55ª. AG em 2017; Doc. 108, Ministério e celebração da Palavra – Plano de formação e acompanhamento dos ministros da Palavra, de 2019. A CEPDF tem o Subsídio Doutrinal n. 11 sobre o Magistério dos Bispos, de 2020, e o Subsídio Doutrinal n. 10 sobre Fé cristã e Laicidade e, em 2013, o Subsídio n. 7, As razões da fé na ação evangelizadora.
Para enfrentar a crise não precisamos somente de diálogo e tolerância, mas precisamos de volta às origens. Começar de Jesus Cristo e sua prática libertadora (civilização do amor), adesão ao Concílio Vaticano II que é “bússola segura para o novo milênio” (João Paulo II in NMI). A defesa da integridade da fé deve pautar-se pela promoção da fé, sobretudo com o testemunho, com o protagonismo dos leigos. Temos o Documento 105, Cristãos Leigos e Leigas na Igreja e na Sociedade aprovado na 54ª AG em 2016. A crise do clero que adquire aspectos dramáticos e o clericalismo, estão ligada em última análise a uma crise de fé. Vamos refletir sobre isto com o Ano Vocacional, mas já temos muitos documentos que indicam pistas para uma “conversão das motivações” para os presbíteros, inclusive da formação como as Diretrizes pra a formação dos Presbíteros da Igreja do Brasil, Doc. 93/CNBB. A CEPDF publicou, em 2010, o Subsídio n. 5, Presbítero, Anunciador da Palavra de Deus, Educador da fé e da Moral da Igreja.
A Igreja que não é ONG (no dizer do Papa Francisco), deve ser Igreja da Acolhida e missão, mas, antes de tudo, deve ser Igreja de Jesus Cristo. Não se começa a ser cristão por tradição recebida ou decisão ética, mas através do encontro com o mistério de Jesus Cristo. É aí que está a força da Igreja. E nesta linha temos as Diretrizes Gerais da Ação Evangelizadora 2019-2023, Doc. 109 aprovado na 57ª Ag de 2019, cujo capítulo I trata do Anúncio do Evangelho de Jesus Cristo. Além do Documento de Aparecida que propõe a missão numa visão cristológica. A CEPDF, no seu Subsídio Doutrinal n. 12 (Vida: Dom e compromisso I, Fé cristã e opção preferencial pelos pobres) trata da “cristológica” opção preferência pelos pobres.
A pandemia nos coloca grandes desafios: a sociedade tem de ser mais solidária, temos de ter mais cuidado com os outros e com a natureza, a tecnologia não pode nos desumanizar, mas deve ser humanizada, combater o mundo da “pós-verdade” ... Porém, nenhum desafio para nós é maior do que manter a comunidade de fé como Igreja, unida e reunida. O encontro pessoal com o Senhor e a comunhão com os irmãos é essencial para a vida de fé. A presencialidade é insubstituível. O subjetivismo acirrado e o individualismo nos torna superficiais colocando-nos contra tudo o que é comunitário. Preservar a memória de Cristo cabeça, no mundo de hoje, implica em preservar a Igreja que é seu corpo. Na Igreja, há uma íntima conexão entre a Palavra, a Tradição e o Magistério (cf. DV Cap. 2). A CEPDF publicou o pequeno vade mecum – Sou católico, vivo minha fé (2005).
O que notamos é que temos os instrumentos que nós mesmos fabricamos colegialmente, para dar uma fé sólida ao nosso povo mas parece que não os aplicamos colegialmente. Temos muitos remédios, que nós mesmos fabricamos, mas não aplicamos. Por que será?
Temos
a necessidade de continuar aprofundando os temas essenciais para a vida humana,
tais como a relação com Deus, o valor da pessoa e da vida humanas, a liberdade,
o sofrimento, etc., à luz das diversas disciplinas teológicas para dar
respostas pastorais ao nosso tempo a partir da FÉ. Urge recuperar o humanismo
cristão baseado numa fé sólida, para responder aos desafios da atual situação.
Repito
uma citação feita por um dos peritos da Comissão: “O futuro da Igreja pode vir e só virá, também hoje, da força daqueles
que têm raízes profundas e vivem da plenitude pura de sua fé. [...] O futuro da
Igreja, também agora, como sempre, há de ser cunhado novamente pelos santos e
profetas. [...] Surgirá, desta vez, uma Igreja que terá perdido muito. Será
menor e terá que recomeçar mais ou menos do início. Já não será capaz de
habitar os edifícios que construiu em tempos de prosperidade. [...] Em todas
essas mudanças que se podem conjecturar, a Igreja terá que encontrar de novo, e
de forma decidida, o que é essencialmente seu, aquilo que sempre foi o seu
centro: a fé no Deus Trinitário, em Jesus Cristo, o Filho de Deus feito homem, a assistência do
Espírito Santo que permanece até o fim dos tempos” (Card. J. Ratzinger in O
futuro da fé, 1975)
A crise que se instaurou com esta Pandemia, precisa se tornar ocasião de renovar a esperança e a ação pastoral baseada na sinodalidade. Sinodalidade recuperada pelo Vaticano II e proposta, hoje, a toda Igreja pelo Papa Francisco. Sinodalidade que requer conversão ao modo de ser Igreja, baseado na escuta de todos, na escuta do Espírito Santo, por parte de todos, e uma decidida conversão pastoral.
Dom Pedro Carlos Cipollini, bispo de Santo André, SP.
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