NOTA PASTORAL SOBRE A AUTÊNTICA LIBERDADE HUMANA
DOM ANTONIO
CARLOS ROSSI KELLER
PELA
GRAÇA DE DEUS E DA SANTA SÉ APOSTÓLICA
BISPO
DE FREDERICO WESTPHALEN (RS)
NOTA
PASTORAL
SOBRE
A AUTÊNTICA LIBERDADE HUMANA
“É
para a liberdade que Cristo nos libertou” (Gl 5,1)
Irmãos e irmãs da Diocese de
Frederico Westphalen e pessoas de boa vontade, desejo, através desta Nota
Pastoral, expressar-me sobre o valor da verdadeira e sadia liberdade que,
frente a determinados acontecimentos nos tempos atuais, parece que vamos,
infelizmente, perdendo a cada dia.
Não posso, sob pena de grave omissão diante de Deus e da História, me calar. Ao contrário, dentro de um quadro de respeito à legalidade, penso que seja necessária uma reflexão sobre esse grave problema do nosso tempo sob pena de, em breve, ser tarde demais para expor estas ideias legítimas. Esta questão ao atingir, direta ou indiretamente, a cada ser humano, atinge também a Igreja em sua real preocupação com o bem-estar da humanidade sofredora.
A Igreja fala
A Igreja fala sobre o tema da
liberdade humana porque “as alegrias e as esperanças, as tristezas e as
angústias dos homens de hoje, sobretudo dos pobres e de todos aqueles que
sofrem, são também as alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos
discípulos de Cristo; e não há realidade alguma verdadeiramente humana que não
encontre eco no seu coração. Porque a sua comunidade é formada por homens, que,
reunidos em Cristo, são guiados pelo Espírito Santo na sua peregrinação em
busca do reino do Pai, e receberam a mensagem da salvação para a comunicar a
todos. Por este motivo, a Igreja sente-se real e intimamente ligada ao gênero
humano e à sua história” (Gaudium et
spes, n. 1).
Faz, pois, sem dúvida, parte da
missão da Igreja não só oferecer o caminho do ser humano remido por Cristo no
seu peregrinar rumo à eternidade feliz, mas também no acompanhamento das suas
múltiplas dificuldades deste mundo, especialmente quando se tenta sufocar os
seus direitos inalienáveis. Deve a Igreja – nas palavras do Papa São João Paulo
II – estar consciente “de tudo aquilo que parece ser contrário ao esforço
para que a vida humana se torne cada vez mais humana e para que tudo aquilo que
compõe esta mesma vida corresponda à verdadeira dignidade do homem. Numa
palavra, a Igreja deve estar bem cônscia de tudo aquilo que é contrário a um
tal processo de nobilitação da vida humana” (Redemptor hominis, n. 14).
É sobre este pano de fundo que desejo, de modo conciso, tratar da nobre liberdade humana à luz da razão e da fé com votos de que chegue a cada pessoa ávida por uma palavra sobre essa questão crucial de sempre.
À luz da razão: Liberdade como direito
Hilton Japiassú e Danilo Marcondes
assim conceituam, no campo da Filosofia, o termo liberdade: “Condição
daquele que é livre. Capacidade de agir por si mesmo. Autodeterminação.
Independência. Autonomia. Em um sentido político, a liberdade civil ou
individual é o exercício, por um indivíduo, de sua cidadania dentro dos limites
da lei e respeitando os direitos dos outros. [...]. Mais especificamente, a
liberdade política é a possibilidade de o indivíduo exercer, em uma sociedade,
os chamados direitos individuais clássicos, como direito de voto, liberdade de
opinião e de culto etc. ‘A livre comunicação dos pensamentos e opiniões é um
dos direitos mais preciosos do homem; todo cidadão deve portanto poder falar,
escrever, imprimir, livremente, devendo contudo responder ao abuso dessa
liberdade nos casos determinados pela lei’ (Declaração dos direitos do homem,
1789). Em
um sentido ético, trata-se do direito de escolha pelo indivíduo de seu modo de
agir, independentemente de qualquer determinação externa. [...] Liberdade de
pensamento: em seu sentido estrito, é inalienável. [...] Reivindicar a
liberdade de pensar significa lutar pela liberdade de exprimir meu pensamento” (Dicionário Básico de Filosofia. 3ª ed. revista e ampliada. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar, 1999).
Ao notarem que toda liberdade há de
ser exercida “dentro dos limites da lei e respeitando os direitos dos outros”,
os dois estudiosos demonstram haver leis – divina e humana – objetivas (e não
reinterpretadas a bel-prazer por quem quer que seja) que são fundamentais na
reta vivência da liberdade. Do contrário, cairíamos na libertinagem que nada
mais é – ainda conforme os dois autores citados com os quais concordo – o
“desregramento” ou a anomia total. Relembram também o respeito aos lícitos
direitos dos outros; sem tal respeito, a sociedade se tornaria uma barbárie.
Disso decorre que quem se
dissesse democrata, mas ameaçasse com censuras ou chegasse, de fato, a coarctar
a livre manifestação de pensamento lícito poria a segurança jurídica e o
próprio Estado democrático de direito em xeque. Poderia, em nome da presumida
defesa da democracia, conduzir, na realidade, a uma inclemente ditadura de
bocas caladas, que tudo justifica, incluindo a violação de direitos
inalienáveis do ser humano.
No campo político, isso vale para todos indistintamente. Daí escrever Dom Helder Câmara que “nada se parece mais com uma ditadura de direita do que uma ditadura de esquerda” (Jornal do Brasil, 11/12/1979, 1º Cad., p. 5). Ambas podem, a seu modo, aviltar a dignidade humana reduzindo-a a mera figura retórica de um pérfido conflito de interesses no qual aos erros dos apoiadores se faria vista grossa, mas aos eleitos como inimigos aplicar-se-iam as mais drásticas penas por meio de interpretações altamente discutíveis das leis humanas. Interpretações que a sã razão, por óbvio, rejeita.
À luz da fé: Liberdade, o grande dom de Deus
O Catecismo da Igreja Católica assegura, no campo da fé e da moral –
áreas nas quais a Igreja exerce o seu magistério autêntico, portanto vinculante
(cf. Lumen Gentium n. 25), o seguinte
sobre a liberdade: “Deus criou o homem dotado de razão e lhe conferiu a
dignidade de pessoa agraciada com a iniciativa e o domínio de seus atos. ‘Deus
deixou o homem nas mãos de sua própria
decisão’ (Eclo 15,14), para que pudesse ele mesmo procurar seu
Criador e, aderindo livremente a Ele, chegar à plena e feliz perfeição: ‘O
homem é dotado de razão e por isso é semelhante a Deus: foi criado livre e
senhor de seus atos’ (Santo Irineu. Adv. Haer., 4,4,3)” (n. 1730).
Logo adiante, o próprio Catecismo define o que se entende por
liberdade. Ela é “o poder, baseado na razão e na vontade, de agir ou não
agir, de fazer isto ou aquilo, portanto, de praticar atos deliberados. Pelo
livre-arbítrio, cada qual dispõe sobre si mesmo. A liberdade é, no homem, uma
força de crescimento e amadurecimento na verdade e na bondade. A liberdade
alcança sua perfeição quando está ordenada para Deus, nossa bem-aventurança”
(n. 1731). Tal liberdade “se exerce no relacionamento entre seres humanos.
Toda pessoa humana, criada à imagem de Deus, tem o direito natural de ser
reconhecida como ser livre e responsável. Todos devem a cada um esta obrigação
de respeito. O direito ao exercício da liberdade é uma exigência
inseparável da dignidade da pessoa humana, sobretudo em matéria moral e
religiosa. Este direito deve ser reconhecido civilmente e protegido nos limites
do bem comum e da ordem pública” (n. 1738).
Certo é que “o exercício da
liberdade não implica o direito de dizer e fazer tudo. É falso pretender que o
homem, sujeito da liberdade, baste a si mesmo, tendo por fim a satisfação do
seu interesse próprio no gozo dos bens terrenos. Por sua vez, as condições de
ordem econômica e social, política e cultural, requeridas para um justo
exercício da liberdade, são muitas vezes desprezadas e violadas. Estas
situações de cegueira e injustiça prejudicam a vida moral e levam tanto os
fortes como os fracos à tentação de pecar contra a caridade. Fugindo da lei
moral, o homem prejudica sua própria liberdade, acorrenta-se a si mesmo, rompe
a fraternidade com seus semelhantes e rebela-se contra a verdade divina”
(n. 1740).
Também há de ser preservada, e nunca vilipendiada, a consciência moral de cada ser humano, pois é nela que se encontra a lei natural moral inscrita por Deus no mais íntimo do homem. Diz o Catecismo citando a Gaudium et spes, n. 16: “Na intimidade da consciência, o homem descobre uma lei. Ele não a dá a si mesmo. Mas a ela deve obedecer. Chamando-o sempre a amar e fazer o bem e a evitar o mal, no momento oportuno a voz dessa lei ressoa no íntimo de seu coração. É uma lei inscrita por Deus no coração do homem... A consciência é o núcleo secretíssimo e o sacrário do homem, onde ele está sozinho com Deus e onde ressoa sua voz” (n. 1776).
Uma exortação final
Por todas as citações transcritas do
Catecismo, já se vê que o dom
precioso da liberdade humana – especialmente de consciência – regido pela Lei
de Deus, não deve ser, jamais, reprimido gratuitamente por qualquer poder
humano, em nenhuma época histórica, pois foi Deus mesmo quem, ao criar o homem
e a mulher à sua imagem e semelhança (cf. Gn 1-2), deu-lhes esse dom e a
ninguém é lícito retocá-lo sob pena de pecado. Afinal, “é para a liberdade que
Cristo nos libertou” (Gl 5,1).
Daí, ante qualquer tentativa de
invasão da nossa consciência ou do cerceamento arbitrário da nossa liberdade,
sermos convidados a reagir expondo a doutrina católica, bem como relembrando a
Declaração Universal dos Direitos Humanos e a Constituição Federal de 1988,
especialmente em seu artigo 5º a tratar dos direitos e garantias fundamentais
que nunca podem nem devem ser violados.
A quem, em qualquer esfera do poder,
decidisse, pela força de seu cargo ou título, vilipendiar a dignidade humana em
sua liberdade – que atinge a consciência moral do homem e da mulher assim
atacados –, seria necessário, com autoridade apostólica, lembrar as palavras do
salmista: “Eu disse: ‘Sois deuses, sois todos filhos do Altíssimo. Contudo,
morrereis como simples homens e, como qualquer príncipe, caireis’.
Levantai-vos, Senhor, para julgar a terra, porque são vossas todas as nações”
(Sl 82/81, 6-8).
Que Nossa Senhora da Conceição Aparecida, rainha e padroeira do Brasil, rogue por todos nós. Amém!
Frederico
Westphalen, 22 de setembro de 2021
+ Antonio Carlos Rossi Keller
Bispo de Frederico Westphalen
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