ELOGIO DA VIDA EREMÍTICA (SÃO PEDRO DAMIÃO)


A tudo isso, nada será mais conveniente do que fazer alusão aos valores da vida solitária e que me refira com brevidade ao que penso acerca da perfeição desta forma de vida louvando-a antes do que polemizar sobre ela. Com toda verdade, a vida solitária é escola de doutrina celestial e adestramento nas ciências divina. Nela está inteiramente Deus ensinando, é o caminho por onde se avança e se chega ao conhecimento da verdade suprema.

O deserto é, com efeito, um paraíso deleitoso onde as virtudes exalam um odor tão bom como os perfumes mais fragrantes ou as flores de aroma mais excelente. Ali, as rosas da caridade reluzem como fogo abrasador; ali, deslumbram os lírios da castidade com sua nívea brancura e as violetas da humildade, junto a eles, não atenuam seu aroma, enquanto se contentam com o último lugar. Ali, se derrama a mirra da perfeita mortificação e ascende indefectivelmente o incenso de uma assídua oração. Por que recordo tudo isso? Porque ali brilham com variadas cores os renovos belíssimos das santas virtudes, renovam-se com o encanto de uma fertilidade perene.

Oh deserto, deleite das almas santas, infindável doçura do gozo interior! Tu és aquele forno ardente onde, com sua oração, os três santos jovens detiveram o avanço das chamas crepitantes e apagaram com o ardor da sua fé as línguas chamejantes que os abrasavam. Ali, enquanto eram consumidas as ataduras, os membros não sentiam as queimaduras e é ali que os pecados são apagados enquanto a alma ganha valor com o hino de louvor divino que diz: “Senhor, rompestes minhas articulações, te oferecerei um sacrifício de ação de graças” (Sl 115,16-17; cf. Dn 3). Tu és o forno onde se põem à prova os vasos do Rei excelso que, talhados pelo martelo da penitência e lixados pela correção salvadora, conseguem um esplendor perpétuo. Em ti se consome toda ferrugem da alma e cai a casca da escória dos pecados: “O forno prova a vasilha do oleiro, o homem justo se prova na tentação da tribulação” (Sir 27,5[1].

Oh cela, farmácia das mercadorias celestes, onde se acham todos os bens que permitem adquirir o País da vida! Bem-aventurado negócio no qual se intercambiam as coisas da terra pelas do céu, as coisas passiveis pelas perenes! Feliz mercado que coloca à venda a vida eterna e para comprá-la basta o pouco que temos: uma breve mortificação da carne obtém o banquete do céu e com um número de lágrimas se ganha um eterno sorriso. Abandonamos aí as propriedades da terra e nos é dado o patrimônio de uma herança eterna.

Oh cela, maravilhosa oficina de arte espiritual, onde a alma humana encontra novamente a imagem de seu Criador e retorna à pureza original; onde os sentidos embotados recuperam sua penetrante percepção e a natureza corrompida se renova! Tu fazes que, enquanto os rostos aparecem pálidos pelos jejuns, o coração se sacie do mais requintado da graça divina. Tu permites que o homem de coração puro veja o que antes, envolto em trevas, não conhecia. Tu devolves o homem à sua origem e o chama de novo da prostração do exílio à excelência de sua antiga dignidade. Tu fazes com que o homem, a partir do castelo fortificado de seu espírito, veja como todas as coisas do mundo passam por baixo dele e o advirta que, como todas essas coisas caducas, ele próprio, por sua vez, passará.

Oh cela, acampamento da sagrada milícia, arsenal do exército vencedor, castelo de Deus, “Torre de Davi, construída para depósito de armas. Aí estão pendentes mil escudos, todos os escudos dos valentes”! (Ct 4,4). Tu és o campo da batalha divina, palco do combate espiritual, espetáculo dos anjos, arena dos mais valorosos lutadores, onde o espírito luta contra a carne e o forte é superado pela debilidade. Já pode rugir a barbárie irresistível dos inimigos; que se aproximem as máquinas de guerra, que chovam flechas e que suba uma espessa floresta de espadas desembainhadas, pois os que estão dentro, providos com a armadura da fé, exultam gozosos sob a invicta proteção de sua Cabeça e estão seguros da vitória, apesar do assalto de seus inimigos. Deles se disse: “O Senhor combaterá por vós, vós esperais em silêncio” (Ex 14,14), e também: “Não temas (...), os que estão conosco são mais numerosos do que os que estão com eles” (2Rs 6,16).

Oh deserto, morte dos vícios, isca e canteiro das virtudes! A lei te enaltece, os profetas te admiram e todos quantos alcançam o cume da perfeição entendem tua mensagem. Moisés te deve a entrega do Decálogo por duas vezes (cf. Ex 20 e 34); Elias, graças a ti, reconheceu a presença de Deus em seu caminho (cf. 1Rs 19,11-14); Eliseu, por ti, se preencheu do espírito dobrado de seu mestre (cf. 2Rs 2,9). E o que acrescentar se, inclusive, o Salvador fez habitar em ti, no início mesmo da obra da redenção humana, o que era a sua voz: já nas alvoradas do mundo definitivo de ti surgiu a estrela da verdade e, em seguida, aquele sol que vem do alto para iluminar com seus raios resplandecentes os que vivem nas trevas. Tu és aquela escada de Jacó que conduz os homens até o céu e fazes descer os anjos como auxílio para a humanidade. És a travessia dourada por onde os homens retornam à pátria. És o estádio no qual os bons atletas recebem a coroa.

Oh vida eremítica, banho das almas, mortes das culpas, purificação de toda escória! Tu purificas os pensamentos ocultos, extingues os maus desejos e conduzes as almas até a beleza de uma limpidez angélica. Não é a cela o lugar do encontro de Deus com os homens, a confluência dos homens e dos anjos? Nela, os cidadãos do céu conversam com os homens e os segredos misteriosos se revelam melhor com silenciosas palavras do que com o som da voz. Porque a cela é o conhecimento do desígnio oculto de Deus em favor dos homens.

Oh que realidade tão bela, quando o irmão refugiado na cela recita a salmodia noturna, contempla o curso do firmamento qual sentinela dos divinos baluartes e percorre com sua boca a ordem dos salmos! Assim como as primeiras estrelas vão cedendo lugar às seguintes até que chega um novo dia, assim os salmos que nascem de seus lábios, como do Oriente, avança pouco a pouco semelhante ao lento girar do firmamento. Enquanto o solitário desempenha a tarefa do seu ofício, os astros finalizam o curso que lhes corresponde: ele, cantando os salmos, progride interiormente para a luz inacessível; eles ao se sucederem preparam o dia que se pode ver com os olhos. E tanto uns quanto outros avançam para a sua meta; em certo modo, os mesmos elementos auxiliam o servo de Deus em seu serviço.

 A cela é testemunha, quando o coração se abrasa no amor divino e busca a paz de Deus com a intensidade de uma perfeita devoção; ela sabe como se derrama sobre o pensamento humano o orvalho da graça celeste, como o pranto da compunção absorve toda uma torrente de lágrimas. E, se os olhos da carne não chegam a chorar, a amargura do coração vale por um dilúvio de lágrimas, pois o que não se manifesta externamente, se mantém sempre vivo no interior do coração. Basta a compunção, dado que não é possível chorar sempre. A cela é o ateliê do ourives onde se talham as pedras preciosas até que possam ser embutidas na estrutura do Templo, sem soar nenhum golpe de martelo.

Oh cela, que te assemelhas ao sepulcro do Senhor, porque nos recebes mortos para o pecado e nos devolves a vida graças ao sopro do Espírito Santo! Tu és o túmulo dos ameaçadores desassossegos dessa vida e indicas a entrada na vida do céu. Em ti encontram um porto seguro todos quantos escapam do naufrágio deste mundo. Em ti, mantém aberto o seu consultório o experientíssimo médico de quantos, feridos em pleno combate, puderam escapar das mãos do inimigo. Qualquer contusão da alma, qualquer chaga do homem interior é curada assim que alguém se refugia no amparo de teu teto. Em ti pensava Jeremias quando disse: “Bom é esperar em silêncio o socorro do Senhor. É bom para o homem carregar seu jugo na mocidade. 28. Permaneça só e em silêncio, quando Deus lhe determinar” (Lm 3,26-28). Quem mora em ti, eleva-se acima de si mesmo, porque a alma sedenta de Deus se iça dentre os atrativos das coisas transitórias e se alça na cidadela da contemplação divina; separa-se das obras mundanas e sobe até o céu com as asas do desejo, e assim se esforça em vislumbrar ao que é altíssimo sobre todas as coisas, o homem ultrapassa-se a si mesmo e a tudo quanto caiu nesse vale do mundo.

Oh cela, autêntica morada espiritual, que tornas humildes os soberbos, sóbrios os intemperantes, bondosos os cruéis, mansos os coléricos, abrasados no amor fraterno os rancorosos! Tu colocas freio à língua tagarela e cinto de castidade às concupiscências carnais. Tu fazes que os inconsistentes adquiram discrição, que os fúteis moderem seus gracejos e que os faladores se submetam à estrita censura do silêncio. Tu és qual nutriz de jejuns e vigílias, guarda da paciência, mestra da simplicidade, puríssima e completamente incapaz da falsa duplicidade.

Tu fazes com que os preguiçosos se sintam espoliados pelo jugo de Cristo e que os indisciplinados dominem seus maus costumes. Tu conheceste muitos homens que alcançaram o cimo da perfeição e chegaram ao alto do ideal da santidade. Tu fazes com que o homem seja grato e amável, e que não fique nele nada de áspero. Tu o convertes numa pedra regular, hábil para a construção das muralhas de Jerusalém, a cidade celestial, pois já não é inseguro pelo alvoroço de seus costumes, mas sempre permanece estável pela gravidade da santa religião. Tu tornas o homem melhor do que era e fazes com que floresçam pela virtude os que estavam cheios de vícios.

“Tu és morena, porém formosa como as tendas de Cedar, os pavilhões de Salomão, és como um rebanho de ovelhas tosquiadas, recém-saído do banho, és como as piscinas de Hesebon; teus olhos, como duas pombas à beira d’água, que se banham no leite e repousam na praia” (Ct 1,5; 4,2; 5,12; 7,5). Porque és o espelho da alma onde o pensamento humano pode olhar-se e corrigir o que é deficiente e desvencilhar-se do supérfluo, endireitar o que está retorcido e embelezar a feiura.

Tu és o leito nupcial onde se recebem as garantias do Espírito Santo e onde a alma, cheia de gozo, estreita sua aliança com o Esposo divino. Todos quantos almejam avançar por caminhos retos te amam e quantos te renunciam, privados da luz da verdade, não sabem para onde dirigir seus passos. “Que minha língua se me apegue ao palato, se eu não me lembrar de ti, se não puser Jerusalém acima de todas as minhas alegrias” (Sl 136,6). Que agradável é cantar-te com júbilo: “É aqui para sempre o lugar de meu repouso, é aqui que habitarei porque o escolhi” (Sl 131,14). “Como és bela e graciosa, ó meu amor, ó minhas delícias!” (Ct 7,7). Já estavas prefigurada em Raquel, de rosto belíssimo e de boa aparência (cf. Gn 29,17), e também por Maria, a que escolheu a melhor parte, que não lhe será tirada (cf. Lc 10,42).

Tu és a montanha de bálsamo, a fonte dos pomares, o fruto maravilhoso. Ainda que por fora possas parecer amargar a quem não te conhece é grande a doçura que conténs.

O deserto é refúgio nas perseguições do mundo, repouso para os trabalhadores, consolo dos aflitos, sombra fresca contra o calor do nosso tempo, repulsa de todo o pecado e liberdade da alma. Para ti se encaminhou Davi, quando teve de sofrer todo os males do mundo, quando teve de suportar o rancor de um coração obscuro e malicioso (cf. 1Sm 23,14). “Fugiria para longe, habitaria no deserto” (Sl 54,8).

Que mais cabe relembrar, se até o Redentor dos homens quis viver no deserto antes de iniciar sua vida pública e se dignou consagrar-te com sua habitação. Depois de purificar a água batismal na qual se submergiu, o evangelista nos diz que: “E logo o Espírito o impeliu para o deserto. Aí esteve quarenta dias. Foi tentado pelo demônio e esteve em companhia dos animais selvagens” (Mc 1,12-13). O mundo, portanto, deve reconhecer a sua dívida contigo e Deus não ignora que acolheste a pregação e os sinais do que haveria de se cumprir.

Oh deserto, pavoroso refúgio dos espíritos malignos, onde as celas dos monges, como as colunas das tendas de um acampamento, como as torres de Sião ou os baluartes de Jerusalém, montam guardas ante os inimigos da Síria e de Damasco! Na verdade, quando em cada uma das celas se realizam tarefas diversas com um único espírito, quer dizer, quando enquanto aqui alguém canta salmos, ali outro reza e mais além alguma pessoa escreve ou se fadiga com o trabalho manual, quem não reconhecerá que ao deserto se pode aplicar aquelas palavras divinas que dizem: “Quão formosas tuas tendas, Jacó, tuas moradas, Israel! Elas se estendem como vales, como jardins à beira do rio, como aloés plantados pelo Senhor, como cedros junto das águas”? (Nm 24,5-6).

E que outra coisa direi de ti, vida eremítica, vida bendita, jardim das almas, vida angélica e santa, tesouro de gozos celestes, assembleia dos espíritos mais seletos! Teu odor é melhor do que aroma de qualquer perfume, teu sabor é mais doce do que as gotas que caem de um favo e mais delicioso do que um mel para a boca do coração iluminado. Tudo quanto de ti se pode dizer é pouco pelo que merece a tua dignidade, pois a língua não consegue expressar o que o espírito pressente graças a ti; tudo o que no íntimo do coração permites que saboreie o gozo interior, dificilmente pode explicá-lo a voz humana.

Os que te conhecem, te amam e difundem o teu louvor: eles que repousam docemente no abraço do teu amor. Os que nada sabem de tudo isso te desconhecem, porém eu, ainda que confessando-me incapaz de louvar-te como se deve, oh vida bendita, ao menos sei, com segurança, o que proclamo sem dúvida alguma: quem quer que se esforce pela perseverança no desejo de teu amor, habitará em ti e Deus habitará nele!

O diabo não poupa suas tentações para abater ali mesmo onde foi derrotado, mas o vencedor dos demônios é, por sua vez, companheiro dos anjos, o desterrado deste mundo chega a ser herdeiro do paraíso, o que nega-se a si mesmo, converte-se em seguidor de Cristo. Depois ele se eleva e, ao final do caminho, entrará certamente na glória da sua amizade.

         E eu vo-lo direi com certeza: quem levou, pelo amor de Deus e até o seu final, esta vida solitária, quando abandona esta morada na carne alcançará aquele edifício inefável, não feito por mãos de homens, eterno no alto do céu.

            (São Pedro Damião. Dominus vobiscum, cap. XIX).


[1] Abreviação de Sirácida. É o mesmo que livro do Eclesiástico – N.T.

Comentários

  1. interesante pero hay que revisar la traducción, no es celular ni célula, es celda.. los monjes en su tiempo no tenían ni idea que iba a existir el celular....

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