BOLSONARO E A DEFESA DA PROPRIEDADE
A legítima defesa da propriedade privada relembrada pelo Governo Federal tem seu fundamentos na Antropologia (estudo do homem), no Direito e na Doutrina Social da Igreja, conforme veremos neste artigo dividido em três partes.
A Antropologia
Jair Bolsonaro, presidente da
República, encaminhará ao Congresso Nacional um Projeto de Lei (PL) que deseja
dar amplo direito de reação a uma pessoa que tiver a sua propriedade invadida
por estranhos. A proposta merece comentários.
De início, afirmemos que é possível,
à luz da Filosofia e de outras ciências experimentais que a auxiliam, tentar
demonstrar o valor antropológico de uma propriedade particular. Sim, desde
tempos longínquos da história, há registros de que o ser humano é um ser social
e de união e, por isso, também tem o seu espaço (ou propriedade) defendido como
um lugar próprio que é quase a extensão de sua pessoa.
Para analisarmos bem essa realidade,
tomamos as pesquisas realizadas, no século XX, pelos etnólogos W. Schmidt, M.
Gurinde, Kroppers, entre outros da Escola de Viena (Áustria) que publicaram o
resultado da densa investigação realizada numa obra de seis volumes intitulada Der Usprung der Gotteside e que o
renomado filósofo e teólogo brasileiro Dom Estevão Bettencourt († 2008)
cita em seu Curso de Doutrina Social da
Igreja. Rio de Janeiro: Mater Ecclesiae, 1992, p. 143-144.
Da
obra de Bettencourt, extraímos o seguinte trecho referente ao valor sagrado da
propriedade particular enquanto território de vida de um grupo social: “Não
poucos sociólogos do século passado [XIX – nota nossa] julgavam que o gênero
humano inicialmente vivia em absoluta comunhão de bens e mulheres, regendo-se
cada indivíduo pela lei do egoísmo e da ‘luta de todos contra todos’. As
pesquisas recentes de Etnologia, porém, desfizeram essas concepções,
demonstrando que os povos primitivos (os quais, por sua cultura rudimentar,
representam a primeira etapa da humanidade) conhecem o direito de propriedade,
assim como o valor moral e religioso da mesma”.
Chega
o Padre Estevão Bettencourt, sempre seguindo os já citados etnólogos
austríacos, a mostrar os fundamentos desse valor sagrado do espaço próprio de
cada um do seguinte modo: “Os povos de civilização mais antiga (os Negritos das
Filipinas, os Negrilhos da África, os Índios da Terra do Fogo, os Semang da
Malásia etc.) se distribuem em grupos de 30/70 pessoas, geralmente
consanguíneas entre si. Cada qual desses grupos habita seu território bem
delimitado, ao qual membros de outro clã não têm acesso a não ser que os
proprietários o permitam” (p. 148). Vê-se que, nos grupos pesquisados em
diversas partes do mundo pelos etnólogos austríacos, prevalece a valorização e,
por conseguinte, a defesa do território como espaços seus e só seus, alicerçado
num laço de sangue ou de parentesco.
Pode alguém se assustar com tudo
isso, mas nada há de estranho aí. O bom-senso mesmo explica essa atitude sem
grandes dificuldades ou necessidade de fundamentações ampliadas a partir das
seguintes questões: você receberia bem em sua casa um estranho trazido por
algum parente ou amigo seu? Provavelmente sim. Pense agora, prezado(a)
leitor(a), qual seria a sua reação ao chegar um dia à sua casa e encontrar no
portão um estranho a dizer-lhe: “Vim tomar um café aqui em sua casa”. Muito
provavelmente a entrada desse sujeito seria impedida e dependendo da arrogância
dele no falar a resposta viria à altura, usando dos meios necessários
disponíveis para que o intruso não invadisse sua residência. Em conclusão: é
cultural aceitar o amigo e excluir o estranho, pois nunca se sabe qual é a real
intenção de quem se aproxima de você.
As
pessoas, ao protegerem os seus espaços físicos de vida, de trabalho e de lazer,
mantêm a solidariedade humana que leva não só à autodefesa, mas também à
heterodefesa, ou seja, à proteção do outro. Desse modo, não deixam que o
estranho invada o seu território, mas também protegem o amigo ou o vizinho de
ter a propriedade invadida por alheios. É a “vizinhança solidária” que,
realmente, muito inibe crimes.
Isso
se dá não só pelos laços sanguíneos (de irmão para irmão), que é, talvez, o
mais forte, mas também entre amigos ou vizinhos reunidos mantendo a
solidariedade de uns para com os outros pela reciprocidade (cf. Ralph Linton. O homem: uma introdução à antropologia.
São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 108s).
A proposta do presidente é, portanto,
antropologicamente, muito válida.
O Direito
No campo do Direito ou da Lei, a
propriedade de alguém merece atenção especial, de modo que en passant, ou a voo de pássaro, é preciso observar algumas
situações apresentadas por estudiosos diversos sobre o tema.
Antes,
porém, será preciso definir Lei e dizer que há uma Lei Natural e uma Lei
Positiva Divina ou Humana. É o grande filósofo e teólogo medieval São Tomás de
Aquino († 1284)
quem assim define Lei: “uma determinação da razão em vista do bem comum,
promulgada por quem tem o encargo da comunidade”.
Após
apresentar essa definição, Dom Estevão Bettencourt a explica com detalhes ao
escrever: “A lei é uma determinação, uma ordem, e não um simples conselho... Da
razão, isto é, deve proceder da inteligência capaz de conhecer os valores...
Bem comum: a lei deve ter por objetivo o bem da comunidade à qual ela se destina...
Por quem tem o encargo...: só tem força de lei as ordens da autoridade
legítima... promulgada: a lei deve ser publicada, pois não se refere a uma
pessoa ou a um caso isolado, mas a uma coletividade e uma série de casos” (Curso de Filosofia. Rio de Janeiro:
Mater Ecclesiae, 1994, p. 251). Há, no entanto, como dizíamos, a Lei Natural e
a Lei Positiva Humana.
A
Lei Natural “é aquela que Deus
promulga através da natureza das criaturas. Pode ser física: identifica-se, então, com as leis da natureza que regem as
criaturas, sem que haja conhecimento e liberdade da parte destas (lei da
gravidade, da atração da matéria, da flutuação...). Pode ser também moral: coincide então com as normas
morais que o homem pode conhecer mediante a luz da razão (não matar, não
roubar, honrar pai e mãe...)” (idem,
p. 252).
Existe
também a lei humana. É aquela que a
autoridade sanciona tendo em vista aplicar concretamente a Lei de Deus às
circunstâncias em que vivem os homens. Desse modo, entende-se que toda lei
humana deve ser eco da lei natural, caso contrário, a legislação humana é
iníqua, arbitrária ou causadora de desmandos que levam a totalitarismos, como
os vistos no século XX banhado pelo sangue de duas grandes guerras mundiais (a
primeira de 1914 a 1918 e a segunda de 1939 a 1945).
Para
relembrar aos homens o valor da Lei Natural, surgiu a Declaração Universal dos
Direitos Humanos, em 1948, na qual se lê – dentro da temática que estamos
tratando – que: “Todo homem tem direito à liberdade de locomoção e
residência...” (art. XIII); “Todo homem tem direito à propriedade, só ou em
sociedade com outros” e “Ninguém será arbitrariamente privado de sua
propriedade” (art. XVII).
Ora,
também a Constituição Federal, promulgada em 5 de outubro de 1988, assim diz a
respeito da residência em seu artigo 5º, XI “a casa é asilo inviolável do
indivíduo, ninguém nela podendo penetrar sem consentimento do morador, salvo
caso de flagrante delito ou desastre, ou para prestar socorro, ou, durante o
dia, por determinação judicial”.
Comentando,
Marcus Vinícius Ribeiro, doutor em Direito, diz que esse “durante o dia” deve
ser das 6h00 às 18h00 (Direitos Humanos e
Fundamentais. 2ª ed. revista e ampliada. Campinas: Russel, 2009, p. 55).
Manoel Gonçalves Ferreira Filho, constitucionalista de nomeada, diz que na casa
de alguém “é vedada a entrada de quem quer que seja sem o consentimento do
morador” (Curso de Direito Constitucional.
São Paulo: Saraiva, 1997, p. 298). Tais conquistas têm de ser mantidas com
amparo legal contra bandidos e/ou desordeiros invasores de terras.
Em
conclusão, R.G. Renard afirma: “A propriedade faz parte da natureza do homem e
da natureza das coisas. Como o trabalho, ela encerra um mistério; é a projeção
da personalidade humana sobre as coisas. A pessoa tende à propriedade por um
impulso instintivo, do mesmo modo que a nossa natureza animal tende ao
alimento. O apetite da propriedade é tão natural à nossa espécie como a fome e
a sede. [...] É isto que se entende quando se afirma que a propriedade decorre
do direito natural” (L’Eglise et la
question sociale. Paris, s/d, p. 137s apud E. Bettencourt. Curso de Doutrina Social da Igreja, 1992, p.
136-137).
Eis,
pois, as bases legais sobre o direito de propriedade.
A Doutrina Social da Igreja
A propriedade
particular condiz tão perfeitamente com a Lei Divina positiva que ela, nos Dez
Mandamentos, a defende em dois deles.
O
7º Mandamento prescreve o “Não furtarás” (Dt 5,19) ao passo que o 10º condena
até mesmo a cobiça desregrada ao que é dos outros: “Não cobiçarás a mulher do
teu próximo. Não cobiçarás sua casa, nem seu campo, nem seu escravo, nem sua
escrava, nem seu boi, nem seu jumento, nem nada do que lhe pertence” (Dt 5,21).
Ainda: em todo o Antigo Testamento, muitos homens – Abraão, Isaque, Jacó, Davi,
Jó etc. – tornaram-se santos em meio às riquezas de que eram proprietários.
Estas não são, em si mesmas, condenáveis; a condenação só recai sobre o apego
desmedido a elas.
No
Novo Testamento, o abastado Zaqueu, em seu desapego, se salva (cf. Lc 19,7-10),
ao passo que o rico epulão, em
seu apego aos bens deste mundo, se condena (cf. Lc 16,19-31).
O Senhor Jesus aceita a ajuda de mulheres cheias de bens materiais (cf. Lc
8,1-3) e relaciona-se amigavelmente com José de Arimateia e Nicodemos (cf. Jo
19,38-39). Afinal, só se pode praticar as obras de misericórdia descritas em Mt
25,31-46 quem tem o que ofertar (cf. Lc 21,1-4). Mais: João Batista, ao pregar
penitência, não impunha que os soldados se desfizessem de seus justos salários,
mas que se contentassem com eles (cf. Lc 3,10-14). Reafirma-se, assim, a mesma
doutrina do
Antigo Testamento: o problema não está na riqueza (ou na propriedade) em si,
mas no seu mau uso.
Daí
escrever escreve Dom Estêvão Bettencourt, OSB: “Jesus não era contrário à
riqueza como tal, como demonstram os Evangelhos: teve amigos da alta sociedade,
como Nicodemos e José de Arimateia, dos quais não exigiu o despojamento de seus
bens (cf. Jo 3,1; 19,38); as mulheres mencionadas em Lc 8,1-3 serviram a Jesus
“com seus bens”; Zaqueu, o cobrador de impostos, foi visitado pelo Senhor
“porque ele também era um filho de Abraão” (Lc 19,8); Lázaro, Marta e Maria não
parecem ter sido pobres – o que não impedia Jesus de nutrir viva amizade com
eles. São Paulo faz recomendações aos cristãos “ricos deste mundo” (1Tm
6,17-19), mas não manda que se tornem materialmente pobres. O que o Evangelho
condena é a riqueza gananciosa e avarenta” (Curso
de Doutrina Social da Igreja. Rio de Janeiro: Mater Ecclesiae, 1992, p.
16).
A
Igreja, ao longo do tempo, condenou os inimigos da propriedade particular como
se esta fosse má em si mesma: o ebionismo e o gnosticismo, no século II, o
maniqueísmo, nos séculos III/IV, o catarismo, valdensismo e joaquimismo nos
séculos XI ao XII. Ante correntes religiosas que, no século XIV, se diziam
inspiradas em São Francisco de Assis e condenavam a propriedade privada, o Papa
João XXII declarou: “Será considerado herege todo aquele que sustentar que
Jesus Cristo e seus Apóstolos, em relação às coisas de que se serviram, não
praticaram senão o mero uso de fato (não de direito); daí se poderia concluir
que tal uso era ilícito, conclusão esta que seria blasfematória”
(Constituição Quia quorumdam,
10/11/1323; cf. a Bula Cum inter
nonnullos, 12/11/1323). A condenação da Igreja, por razões semelhantes, se
seguiu contra o anabatismo, no século XVI, e o comunismo, do século XIX aos
nossos dias.
Já
o voto de pobreza é para pessoas chamadas por Deus à vivência de um carisma na
Igreja, em circunstâncias próprias, e não para todos os seres humanos
indistintamente. Aliás, uma pobreza mal compreendida levaria a humanidade ao
miserabilismo, não ao bem de todos e de cada um, conforme exorta a Doutrina
Social da Igreja (cf. Compêndio Doutrina Social da Igreja. Índice.
Verbete: propriedade, p. 481-482).
Por
fim, toda propriedade particular decorre da própria natureza, segundo o Papa
Leão XIII ao ensinar: “A propriedade particular [...] é de direito natural para
o homem: o exercício deste direito é coisa não só permitida, sobretudo a quem
vive em sociedade, mas ainda absolutamente necessária” (Rerum novarum, 1891, n. 12). Sua função
primeira é servir ao bem comum, de acordo com o Papa Pio XI que escreve: “A
própria natureza exige a repartição dos bens em domínios particulares,
precisamente a fim de poderem as coisas criadas servir ao bem comum de modo ordenado e constante” (Quadragesimo anno, 1931, n. 56).
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