VIOLÊNCIA, DIGNIDADE HUMANA, LEGÍTIMA DEFESA, AUTORIDADES À LUZ DA MORAL CATÓLICA


           Prezado(a) leitor(a), dirigimos-lhe este trabalho a fim de tratar – à luz da moral católica – da violência, e, por conseguinte, da dignidade humana, da importância da legítima defesa, do papel das autoridades competentes (incluindo as forças de segurança).

            Queremos, com isso, ajudar a todo o Povo de Deus a sentir a maternidade da Igreja em meio às tristezas, preocupações e desânimos frente a onda de violência de vários níveis que grassa o nosso Brasil. Convidamos, por oportuno, cada um(a) a trabalhar, de forma destemida, para vencer o mal com o bem (cf. 1Ts 5,15), sem, contudo, curvar-se ao erro, mas, em contrário – a exemplo de Cristo –, apontá-lo e contra ele agir, sempre que oportuno (cf. Jo 19,23; Jo 2,13-17). Boa leitura e ajude-nos a divulgar este texto!

1. Ser humano, bem comum e sociedade

            O ser humano é, segundo São Tomás de Aquino, “o que há de mais perfeito em toda a natureza”[1]. Ele é a síntese do mundo do espírito e da matéria: um composto harmônico de corpo material, como os demais animais, e de alma espiritual, semelhante aos anjos.

            Embora seja um ser muito social, portanto de união com o próximo – ainda que em meio a conflitos – e chamado a ajudar a construir o Reino neste mundo em vista do bem comum, na demanda da Cidade cujo arquiteto é Deus (cf. Hb 11,10), não é simples parte do todo, mas, sim, merecedor de pleno respeito em sua irrepetível individualidade. Ele não foi feito para a sociedade ou para o Estado; ao contrário, a sociedade e o Estado é que estão à serviço do ser humano.

            Daí, escrever, de modo claro, um importante teólogo brasileiro: “o bem comum e o bem particular estão intimamente ligados entre si. Pode-se dizer, com toda tradição filosófico-teológica, que, na mesma linha de valores, o bem comum (de todos) é superior ao bem particular (de um indivíduo apenas). Mas o bem comum só é bem na medida em favorece a realização de todos e de cada um[2].

            “Por bem comum entende-se o conjunto das condições de vida social que permitem aos grupos e aos indivíduos atingir a sua perfeição”. Ele “comporta: o respeito e a promoção dos direitos fundamentais da pessoa; o desenvolvimento dos bens espirituais e temporais das pessoas e da sociedade; a paz e a segurança de todos. Tal bem se realiza de um modo mais relevante “nas comunidades políticas, que defendem e promovem o bem dos cidadãos e dos corpos intermédios, sem esquecer o bem universal da família humana. Cada ser humano, segundo o lugar que ocupa e o papel que desempenha, participa na promoção do bem comum respeitando as leis justas e encarregando-se de setores de que assume a responsabilidade pessoal, como o cuidado da própria família e o empenho no seu trabalho. Para além disso, os cidadãos, na medida do possível, devem tomar parte ativa na vida pública”[3].

            O ser humano não é, portanto, uma ilha deserta, nem mera peça da engrenagem social, mas, alguém chamado, na inviolável individualidade, a exercer sua vocação à sociabilidade, em meio aos semelhantes.

2. Uma definição de violência

            Definir algo não é tarefa fácil em nenhuma área de estudo. Quando se trata da violência parece que a delimitação se torna quase impossível devido aos vários matizes que cercam a temática.
Como quer que seja, a definição a seguir nos parece muito lógica e, por consequência, apropriada. Diz ela que: Violência “é o uso injusto da força – física, psíquica ou moral – no intuito de privar alguém de um bem a que tem direito (vida, saúde, liberdade...) ou em vista de impedir-lhe uma opção livre, coagindo-o a fazer até o contrário aos seus interesses”.

“Por conseguinte, não se pode chamar [de] ‘violência’ qualquer uso da força, mas só o uso injusto, que lese um direito. Assim, um Estado que recorra à força para impor a aplicação de leis justas ou para punir quem as tenha violado com grave prejuízo para o bem comum, não comete violência, desde que se mantenha dentro dos limites da justiça[4].

            É certo, no entanto, que o combate à violência se faz de dois grandes modos: o preventivo, a englobar a valorização da vida, da família, da propriedade na qual o homem vive e/ou trabalha, bem como na defesa de uma saúde eficiente, moradia digna, educação de qualidade, empregabilidade decente etc., e o punitivo, que garante a cada cidadão ter assegurados (ou restituídos) ao menos os direitos básicos atrás elencados.

Cabe, pois, nestes quesitos, cidadãos e Estado, cada um a seu modo, fazerem sua parte em vista do bem comum e individual, na linha da reciprocidade: uma sociedade bem ordenada tende a contar com cidadãos idôneos e cidadãos idôneos, por sua vez, podem fazer da comunidade em que vivem um local de ótima qualidade.

3. O 5° Mandamento e o direito à legítima defesa

O homicídio – morte deliberada de alguém inocente – é pecado grave condenado no 5º mandamento da Lei de Deus (cf. Êx 20,13; Dt 5,17). Dele se distingue, no entanto, a legítima defesa, mediante a causa de duplo efeito: um bom, desejado (a preservação da própria vida), e outro mal, não desejado, mas tolerado (a morte do injusto agressor).

Uma explanação séria, contudo acessível, é feita por um renomado autor sobre a questão: “É alguma vez lícito matar alguém? Sim, em defesa própria. Se um agressor injusto ameaça a minha vida ou a de um terceiro, e matá-lo é a única maneira de detê-lo, posso fazê-lo. Também é lícito matar quando o criminoso ameaça tomar ou destruir bens de grande valor e não há outra maneira de pará-lo. Daí se segue que os guardiões da lei não violam o quinto mandamento quando, não podendo dissuadir o delinquente de outra maneira, lhe tiram a vida”[5].

Diz o Catecismo“A defesa legítima das pessoas e das sociedades não é uma exceção à proibição de matar o inocente que constitui o homicídio voluntário. ‘Do ato de defesa pode seguir-se um duplo efeito: um, a conservação da própria vida; outro, a morte do agressor’. ‘Nada impede que um ato possa ter dois efeitos, dos quais só um esteja na intenção, estando o outro para além da intenção” (n. 2263)[6].

Isso porque “o amor para consigo mesmo permanece um princípio fundamental de moralidade. É, portanto, legítimo fazer respeitar o seu próprio direito à vida. Quem defende a sua vida não é réu de homicídio, mesmo que se veja constrangido a desferir sobre o agressor um golpe mortal: ‘Se, para nos defendermos, usarmos duma violência maior do que a necessária, isso será ilícito. Mas se repelirmos a violência com moderação, isso será lícito [...]. E não é necessário à salvação que se deixe de praticar tal ato de defesa moderada para evitar a morte do outro: porque se está mais obrigado a velar pela própria vida do que pela alheia’”. (n. 2264).

Ora, “se o uso de armas é legítimo para defender a própria vida, a fortiori é lícito uma pessoa aprender técnicas muito eficazes de defesa pessoal para proteger a integridade física, a honra ou os bens próprios ou do próximo. Portanto, é perfeitamente lícito, segundo a doutrina católica, o aprendizado de técnicas de defesa pessoal”[7].

Cabe destacar que a única ilicitude a ocorrer no ato da legítima defesa é o exagero de quem se defende. Um notório teólogo brasileiro exemplifica e explica: “a pessoa é vítima de assalto ou outro ataque delituoso. Não tem a obrigação de se deixar maltratar pelo criminoso, mas pode empregar os meios necessários (às vezes, não há outros senão os violentos) para se defender. Não vá além do necessário para se defender, mas é-lhe lícito defender-se. O Cristianismo não se deve transformar em pretexto para que a iniquidade campeie impune pelo mundo[8].

4. A importância da legítima autoridade

O quarto mandamento da Lei de Deus, além de ordenar o respeito a pai e mãe, “manda que honremos também todos aqueles que, para nosso bem, receberam de Deus alguma autoridade na sociedade. E esclarece os deveres dos que exercem essa autoridade, bem como os daqueles que dela beneficiam” (Catecismo, n. 2234).

Sim, o Compêndio do Catecismo da Igreja Católica ensina que “a autoridade deve ser exercida, como um serviço, respeitando os direitos fundamentais da pessoa humana, uma justa hierarquia de valores, as leis, a justiça distributiva, e o princípio de subsidiariedade. No exercício da autoridade, cada um deve procurar o interesse da comunidade em vez do próprio e deve inspirar as suas decisões na verdade acerca de Deus, do homem e do mundo” (n. 463).

Em contrapartida, “os que estão submetidos à autoridade vejam os superiores como representantes de Deus e colaborem lealmente no bom funcionamento da vida pública e social. Isto comporta o amor e o serviço da pátria, o direito e o dever de votar, o pagamento dos impostos, a defesa do país e o direito a uma crítica construtiva” (n. 464). A tal obediência, o cidadão só não estaria obrigado se a autoridade agisse contra a Lei de Deus a quem é preciso obedecer antes que aos homens (cf. At 5,29).

Afinal, “nenhum governo pode interferir com suas leis no direito do indivíduo (ou da família) de amar e prestar culto a Deus, de receber a instrução e os serviços da Igreja. Um governo – como um pai – não tem o direito de mandar o que Deus proíbe ou de proibir o que Deus ordena. Mas excetuados estes casos, um bom católico será necessariamente um bom cidadão. Consciente de que a reta razão exige que trabalhe pelo bem de sua nação, cumprirá exemplarmente todos os seus deveres cívicos; obedecerá às leis do seu país e pagará os impostos como justa contribuição para os gastos de um bom governo; defenderá a pátria em caso de guerra justa (como defenderia a sua própria família se fosse atacada injustamente), mediante o serviço das armas se a isso for chamado, considerando justa a causa da sua nação, a não ser que haja evidência adequada e indiscutível do contrário. E fará tudo isso não somente por motivos de patriotismo natural, mas porque a sua consciência de católico lhe diz que o respeito e a obediência à legítima autoridade do seu governo são serviço prestado a Deus de quem procede toda autoridade”[9].

Eis o equilibrado ensinamento da Igreja: a autoridade legítima, eco da divina, está a serviço do bem comum e, por isso, merece acatamento fiel de cada católico. Ao extrapolar, porém suas atribuições perde a legitimidade e não mais merece respeito, mas, sim, oposição do Povo de Deus[10].

5. O dever de proteger a sociedade

            Catecismo é claro quanto ao dever das autoridades constituídas de defenderem a sociedade, em seu n. 2265 e n. 2266, a seguir expostos e, brevemente, comentados.

A legítima defesa pode ser não somente um direito, mas até um grave dever para aquele que é responsável pela vida de outremDefender o bem comum implica colocar o agressor injusto na impossibilidade de fazer mal. É por esta razão que os detentores legítimos da autoridade têm o direito de recorrer mesmo às armas para repelir os agressores da comunidade civil confiada à sua responsabilidade” (n. 2265).

Notemos aqui um importante detalhe: a legítima defesa – vista na parte 3 deste texto – é um direito que pode ser, ou não, exercido, de modo livre, por todo e qualquer ser humano. Em se tratando, porém de alguém responsável, devido à sua função social (um policial, por exemplo), pela vida de outros, esse direito assume o status de grave dever, cujo descumprimento pode expor o próximo, de modo individual ou comunitário, a sérios perigos, inclusive de vida.

Como se dá essa defesa legítima? – Pelo impedimento do injusto agressor de cometer qualquer mal, ainda que para isso se tenha de recorrer a armas, letais ou não. Mais: ao reprimir comportamentos nocivos, inclusive por meio de penas adequadas, o Estado não está mais do que cumprindo sua nobre missão de preservar o bem comum. Tal pena tem dupla finalidade, é punitiva e medicinal. Sim, punitiva por ter como objetivo a restauração da ordem violada e medicinal por servir de exemplo intimidatório a quem planeja se entregar a atos ilícitos, bem como quer levar o próprio errante punido a mudar de conduta, talvez até (o que seria ideal), expiando seu erro e se convertendo para os valores do Evangelho de Cristo (cf. Catecismo, n. 2266).

Depois do trabalho preventivo, repressivo e investigativo das Polícias e do Ministério Público, “no Estado de direitoo poder de infligir as penas é corretamente confiado à Magistratura: ‘As Constituições dos Estados modernos, ao definirem as relações que devem existir entre o poder legislativo, o executivo e o judiciário, garantem a este último a necessária independência no âmbito da lei’”[11].
           
Conclusão
           
No campo da segurança, como em outros da vida social, cabe à Igreja dar as grandes linhas morais sem querer entrar no âmbito técnico/político da questão em foco, pois tal atividade não lhe compete[12].

            A conclusão é, no entanto, de esperança. Esperança de que o bem (e não o mal, apesar de suas façanhas) é que tem a palavra final na história. O Senhor Jesus já nos alertou sobre isso ao avisar: “No mundo tereis tribulações, mas tende coragem: eu venci o mundo” (Jo 16,33).

     Desejamos, ainda, pedir a todos os que lerem este texto – em especial às autoridades legitimamente constituídas de todos os poderes, com uma solicitude muito particular ao Poder Judiciário, aos membros do Ministério Público e das Polícias Militar, Civil, Guarda Civil Municipal e Agentes Penitenciários – que rezem e peçam a bênção de Deus Uno e Trino, por intercessão de Nossa Senhora e de São José a quem o Pai Celeste confiou a guarda de seu único Filho, Jesus Cristo.

            Divulguemos os ensinamentos da Mãe Igreja sobre tão importantes e delicados temas.

            Vanderlei de Lima é eremita na Diocese de Amparo (SP). Graduado em Filosofia pela PUC-Campinas. Certificado em Teologia Moral pela Escola Mater Ecclesiae (Rio de Janeiro). Possui Extensão Universitária em Direito e Punição pela PUC-Campinas. Pós graduado em Psicopedagogia (Unifia-Amparo).


[1] Suma Teológica I, questão 29, art. 3.
[2] Dom Estêvão Bettencourt, OSB. Curso de Doutrina Social da Igreja. Rio de Janeiro: Mater Ecclesiae, 1992, p. 85.
[3] Compêndio do Catecismo da Igreja Católica. São Paulo: Loyola, 2005, n. 407-410.
[4] Bettencourt, op. cit., p. 214.
[5] Leo Trese. A fé explicada. São Paulo: Quadrante, 1981, p. 196.
[6] Catecismo da Igreja Católica. São Paulo: Loyola, 1999 – citado sempre, aqui, como Catecismo.
[7] Monsenhor José Luiz Villac. Catolicismo n. 804, dezembro de 2017, p. 12.
[8] Bettencourt, op. cit., p. 220.
[9] Trese, op. cit., p. 195.
[10] Ver nosso livro: Obedecer antes a Deus que ao homens: a ética cristão do lado dos que defendem a objeção de consciência como um direito humano fundamental. Amparo: Ed. do Autor, 2018, (2ª edição).
[11] Pontifício Conselho “Justiça e Paz”. Compêndio da Doutrina Social da Igreja. São Paulo: Paulinas, 2011, n. 402. Catecismo da Igreja Católica. São Paulo: Loyola, 1999, n. 2266.
[12] Cf. J. Miguel Ibañes Langlois. Igreja e política. São Paulo: Quadrante, 1987.

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