DILEXI TE: SOBRE O AMOR PARA COM OS POBRES
O
Papa Leão XIV deu a conhecer, no dia 09/10/2025, sua primeira Exortação
Apostólica que, em latim, tem por título Dilexi te (Eu te amei) extraído
de Ap 3,9. Dedicada ao amor para com os pobres, é composta de uma brevíssima introdução
e mais cinco capítulos; o último deles faz as vezes de conclusão. Vejamos, de
modo assaz resumido, o conteúdo de cada parte desse Documento.
***
Introdução
(1-3[1])
“A
declaração de amor do Apocalipse remete para o mistério insondável que foi
aprofundado pelo Papa Francisco na Encíclica Dilexit nos[2]
sobre o amor humano e divino do Coração de Jesus. Nela, admiramos o modo como
Jesus se identifica ‘com os últimos da sociedade’ e como, através do seu amor
doado até ao fim, mostra a dignidade de cada ser humano, sobretudo quando é ‘mais
fraco, mísero e sofredor’. Contemplar o amor de Cristo ‘ajuda-nos a prestar
mais atenção ao sofrimento e às necessidades dos outros, e torna-nos
suficientemente fortes para participar na sua obra de libertação, como
instrumentos de difusão do seu amor’ (Carta enc. Dilexit nos (24 de
outubro de 2024), 171: AAS 116 (2024), 1422-1423)” (n. 2).
Pode-se
dizer que, nas pegadas de Francisco († 2025) e sob sua inspiração – dado ser
intenção daquele Pontífice, se a morte não o tivesse colhido, depois da Dilexit
nos, tratar do amor da Igreja, logo de cada um de nós, para com os pobres –,
o atual Pontífice complementa a doutrina do seu imediato predecessor no que diz
respeito ao relacionamento do fiel para com Deus e para com os pobres, os preferidos
do Reino.
Capítulo
I: Algumas palavras indispensáveis (4-15)
O
primeiro capítulo da Exortação estabelece um elo profundo entre o amor por
Jesus Cristo e o compromisso com os pobres, elevando este último ao nível da Revelação
e da missão eclesial, com forte ênfase no ensinamento do Papa Francisco.
Seu ponto de
partida é o episódio bíblico da mulher que derramou o perfume precioso sobre
Jesus (cf. Mt 26,6-13). Mesmo criticada pelos discípulos, que viam o ato como um
“desperdício”, pois o dinheiro gasto com o unguento poderia ter sido doado aos
pobres, Jesus defendeu o seu gesto como uma expressão de amor e afeto para com
o Messias sofredor. O Senhor vincula a permanência dos pobres (“Pobres, sempre
os tereis convosco”) com a Sua própria promessa (“Eu estarei sempre convosco”),
e sobretudo, com a clássica identificação: “Sempre que fizestes isto a um
destes meus irmãos mais pequeninos, a mim mesmo o fizestes” (Mt 25,40). O
contato com os que não têm poder algum é, portanto, uma forma fundamental de
encontro com o Senhor.
A opção
preferencial pelos pobres é aí apresentada como o caminho para a renovação da
Igreja. O texto destaca a inspiração do Papa Francisco, que, ao escolher o seu
nome, recebeu de um cardeal amigo, Dom Cláudio Hummes, o apelo: “Não se esqueça
dos pobres!”. Essa escolha remete a São Francisco de Assis, cuja conversão se
deu ao abraçar um leproso: nele reconheceu o próprio Cristo. Leão XIV afirma
que a opção preferencial pelos pobres gera uma renovação extraordinária,
exigindo que a Igreja se liberte da autorreferencialidade e ouça o clamor dos
pobres.
O clamor dos
pobres é, pois, um grito que interpela a história da humanidade, as sociedades,
os sistemas políticos e também, é certo, a própria Igreja. A Sagrada Escritura
revela um Deus solícito que vê a opressão e ouve o clamor do seu povo (Ex
3,7-8.10), enviando um Salvador. A indiferença a esse clamor é um pecado que
afasta o ser humano do coração de Deus. A pobreza é, em si, um fenômeno
multifacetado e amplo, englobando não apenas a carência material, mas também a
marginalização social, a falta de direitos, a pobreza moral, espiritual e
cultural.
O compromisso de
erradicar as causas estruturais da pobreza é considerado insuficiente. As
sociedades atuais, em vez disso, promovem desigualdades crescentes e uma
cultura que descarta os outros. A busca ilusória por uma felicidade baseada na
acumulação de riquezas e no sucesso social leva à exploração e à formação de
elites ricas que vivem em uma “bolha”, insensíveis ao sofrimento de milhões de
pessoas. Como se vê, o texto papal alerta para a gravidade da desnutrição e da
escassez de água, e para as novas formas de empobrecimento mesmo em contextos
prósperos. O Papa Francisco é lembrado para sublinhar que as mulheres são, com
frequência, “duplamente pobres”, sofrendo exclusão e violência apesar de
possuírem a mesma dignidade e direitos que os homens.
O pontífice
critica severamente os preconceitos ideológicos que tentam justificar a
pobreza. Desmente a falsa visão da meritocracia segundo a qual a maioria dos
pobres estaria nessa situação por falta de “méritos”. O Papa Francisco é, então,
uma vez mais, citado para desmistificar a ideia de que o mundo moderno reduziu
a pobreza; ela deve ser analisada no contexto das possibilidades reais de um
momento histórico concreto, e a riqueza atual, que cresceu “sem equidade”,
gerou novas pobrezas.
A conclusão faz um
apelo aos cristãos a fim de que não se deixem contagiar por ideologias mundanas
que desprezam a caridade. O exercício da caridade não é uma fixação, mas o “núcleo
incandescente da missão eclesial” e o caminho para permanecer na “corrente viva
da Igreja”. Não se pode esquecer os pobres.
Capítulo II: Deus
escolhe os pobres (16-34)
O leitor encontra
aqui uma profunda reflexão teológica e bíblica sobre a opção preferencial de
Deus pelos pobres, definida como o núcleo da fé cristã e da missão da Igreja.
É a opção
preferencial pelos pobres apresentada como uma expressão do amor misericordioso
de Deus, cujo projeto de salvação envolve o Seu próprio descer e partilhar a
pobreza humana. Deus, em Sua compaixão, preocupa-se com a condição de
fragilidade humana. Jesus Cristo encarna essa “preferência” ao fazer-Se pobre,
nascendo humildemente e morrendo na extrema humilhação da cruz, compartilhando da
nossa pobreza radical.
Essa “preferência”
não é exclusivista, mas enfatiza o agir de Deus em favor dos discriminados e
oprimidos, pedindo à Sua Igreja uma posição decidida e radical em favor dos
mais fracos. O Antigo Testamento já revela Deus como o amigo e libertador dos
pobres (Sl 34,7), que ouve o seu clamor e, por meio dos profetas (Amós e
Isaías), denuncia as iniquidades contra eles, exigindo que o culto seja
renovado a partir da justiça. No coração de Deus, os pobres ocupam um lugar
preferencial.
Contudo, toda
predileção divina pelos pobres encontra plena realização em Jesus de Nazaré.
Sua encarnação foi um “esvaziamento” (Fl 2,7) e uma pobreza radical,
simbolizada desde o Seu humilde nascimento e rejeição em Belém, Sua fuga para o
Egito, Sua expulsão de Nazaré e, finalmente, Sua crucificação fora de
Jerusalém. Jesus não é apenas o Messias pobre, mas dos pobres e para os pobres.
A condição social de
Jesus era humilde: carpinteiro (téktōn), uma categoria vista como
inferior. Seus pais apresentaram a oferta dos pobres no Templo, e Ele próprio
não tinha “onde reclinar a cabeça” (Mt 8,20), sendo um mestre itinerante cuja
precariedade era sinal de Sua confiança no Pai. Basta lembrar que, no início de
Seu ministério, Jesus se apresentou como Aquele que veio “anunciar a Boa-Nova
aos pobres” (Lc 4,18). Os sinais do Seu ministério – curar doentes, dar vista
aos cegos, anunciar a Boa-Nova aos pobres (Lc 7,22) – manifestam a proximidade
de Deus. Ele combateu a ideia de que a pobreza e a doença eram castigos pelos
pecados, invertendo, na parábola do rico avarento e Lázaro, essa concepção. É Jesus
quem proclama: “Felizes vós, os pobres, porque vosso é o Reino de Deus” (Lc
6,20).
O texto papal sublinha
que a preocupação com os mais abandonados “deriva da nossa fé em Cristo, que se
fez pobre”. O amor a Deus e o amor ao próximo são inseparáveis. O Apóstolo João
afirma que “Aquele que não ama o seu irmão, a quem vê, não pode amar a Deus, a
quem não vê” (1Jo 4,20). O amor ao próximo é a prova palpável da autenticidade
do amor a Deus (1Jo 4,12.16). As obras de misericórdia são o sinal dessa
autenticidade. O Senhor nos aconselha a convidarmos para nossos banquetes os
pobres e os marginalizados a fim de que a ação seja de gratuidade, sem
expectativa de retribuição (Lc 14,12-14). A parábola do Juízo Final (Mt
25,31-46) oferece a regra de comportamento pela qual seremos julgados,
indicando que a santidade exige o cumprimento dessas exigências sem desculpas.
A Palavra de Deus
é “clara, direta, simples e eloquente” sobre os pobres, e “nenhuma hermenêutica
eclesial tem o direito de relativizar” o seu sentido exortativo. O texto cita a
Carta de São Tiago, que questiona a fé sem obras: “a fé: se ela não tiver
obras, está completamente morta” (Tg 2,14-17), e lança um forte aviso aos ricos
que oprimem e se entregam ao luxo: o salário não pago aos trabalhadores clama
aos céus (Tg 5,3-5). Mais ainda: A primeira comunidade cristã é apresentada
como exemplo a ser imitado, vivendo a fé que opera através da caridade. Eles
organizaram a assistência às viúvas (At 6,1-6) e realizaram coletas para ajudar
comunidades pobres, sendo o Apóstolo Paulo exortado a “não se esquecer dos
pobres” (Gl 2,10).
A generosidade em
favor dos pobres é um bem para quem a pratica, pois “Deus ama quem dá com
alegria” (2Cor 9,7). As promessas bíblicas garantem que quem dá ao pobre
empresta a Deus e será retribuído (Pr 19,17). A vida das primeiras comunidades
é uma admoestação perene para as gerações futuras, incentivando a fé que se
manifesta em obras de caridade.
Capítulo III: Uma
Igreja para os pobres (35-81)
O presente capítulo sintetiza a opção radical da Igreja
pelos pobres desde as suas origens até o período das Ordens Mendicantes e da
Revolução Pedagógica, sendo fortemente influenciado pelo desejo do Papa
Francisco por uma “Igreja pobre e para os pobres”. Leão XIV enfatiza que o
vínculo entre a fé e os pobres é indissolúvel e que eles são a verdadeira
riqueza da Igreja.
A Igreja, chamada
a configurar-se com o seu Fundador pobre e sofredor, expressa sua missão no
serviço (diakonía) aos mais pobres. O exemplo mais vivo é o dos primeiros
diáconos. Santo Estêvão, o protomártir, uniu o serviço aos necessitados e o
testemunho de sangue. No século III, São Lourenço, diácono de Roma, ao ser
intimado a entregar os tesouros da Igreja, apresentou os pobres, afirmando: “Estes
são os tesouros da Igreja” (citando Santo Ambrósio), reforçando que a
verdadeira riqueza de Cristo está naqueles que Ele habita.
Os Padres da
Igreja[3] reconheceram nos pobres um
acesso privilegiado a Deus. A caridade não era vista como mera virtude moral,
mas como expressão concreta da fé no Verbo encarnado, sendo os pobres uma parte
essencial do Corpo vivo de Cristo. Eis alguns exemplos entre eles.
Santo Inácio de
Antioquia e São Policarpo exortavam os fiéis a não descuidarem a caridade para
com as viúvas, os órfãos e os necessitados, mostrando a Igreja como mãe dos
pobres. São Justino, por sua vez, ao descrever a liturgia cristã ao imperador,
destacou que a coleta era imediatamente distribuída aos órfãos, viúvas,
enfermos, presos e forasteiros, testemunhando que a fé nascente não separava o
crer do agir social. São João Crisóstomo, um dos mais ardentes pregadores da
justiça social, exortava: “Queres honrar o Corpo de Cristo? Não permitas que
seja desprezado nos seus membros”. Afirmava que o culto no altar é falso se
Cristo, nos pobres, está nu e faminto à porta. Para ele, “não dar aos pobres é
roubá-los”. A caridade era o critério do verdadeiro culto e condição de
salvação. Já Santo Agostinho, influenciado por Santo Ambrósio, ensinou o amor
preferencial pelos pobres, vendo neles a presença sacramental do Senhor. Ele
via a esmola como caminho de conversão e justiça restabelecida, não como
paternalismo, e garantia de que Deus “não se deixa vencer em generosidade” por
quem O serve nos mais necessitados.
Dando um passo
além, vê-se que o cuidado com os enfermos é parte integrante da missão da
Igreja, que neles reconhece o Senhor crucificado. Santos como São João de Deus
(Ordem Hospitalária, “Fazei o bem, irmãos!”) e São Camilo de Léllis
(Camilianos) fundaram hospitais-modelo, dedicando-se a servir os doentes com “afeto
materno”. Congregações femininas, como as Filhas da Caridade, de São Vicente de
Paulo, disseminaram o cuidado materno, a escuta e a ternura em hospitais e
asilos. A presença cristã junto aos doentes revela que a salvação é um gesto
concreto: o primeiro remédio é o toque da compaixão.
A vida monástica
também incorporou o serviço. São Basílio Magno integrou o trabalho manual e a
hospitalidade à espiritualidade dos monges, construindo as Basilíades
(hospitais e escolas para pobres). São Bento de Núrsia fez do acolhimento dos
pobres e peregrinos o centro da sua Regra, pois “na pessoa desses, Cristo é
recebido”. Os mosteiros beneditinos tornaram-se centros de economia solidária e
contraste à exclusão, onde os pobres encontravam pão, dignidade e educação.
A missão de
libertar os cativos (Lc 4,18) levou, posteriormente, ao surgimento de Ordens religiosas
no século XIII (Trinitários e Mercedários) voltadas a resgatar cristãos
escravizados, muitas vezes oferecendo a própria vida. Essa missão se estende
hoje ao combate às escravidões modernas (tráfico, trabalho forçado etc.).
As Ordens
Mendicantes (Franciscanos, Dominicanos) do século XIII trouxeram uma revolução
evangélica, adotando a pobreza itinerante para serem pobres com os pobres. São
Francisco de Assis assumiu a pobreza como esposa e queria assemelhar-se a
Cristo nu e crucificado, vivendo em solidariedade relacional e vendo nos pobres
imagens vivas do Senhor. Santa Clara obteve o Privilegium Paupertatis
para viver sem bens, como forma de liberdade e profecia. São Domingos de Gusmão
uniu a pregação da Verdade ao testemunho de uma vida pobre, ensinando a partir “de
baixo”.
Por fim, a
instrução dos pobres é destacada como a mais alta expressão da caridade. São
José de Calasanz (Escolápios) fundou a primeira escola pública, popular e
gratuita da Europa no final do século XVI. No século XVII, São João Batista de
La Salle (Irmãos das Escolas Cristãs) e, no século XIX, São Marcelino
Champagnat (Maristas) e São João Bosco (Salesianos) dedicaram-se a evangelizar
e a educar a juventude pobre, transformando a sala de aula em um espaço de
promoção humana e salvação. A Igreja, ao ensinar, cumpre um ato de justiça e
fé.
Capítulo IV: Uma
história que continua (82-102)
Aqui é delineada a
evolução da Doutrina Social da Igreja e a consolidação da opção preferencial
pelos pobres no Magistério Pontifício e Conciliar, enfatizando que os pobres
são sujeitos e não apenas objetos de assistência.
O Magistério dos
últimos 150 anos constitui um “tesouro de ensinamentos sobre os pobres”,
impulsionado por uma raiz popular de leigos e religiosos envolvidos nas
transformações sociais. Os Papas se tornaram voz dessas novas consciências.
Basta lembrar, nos séculos XIX e XX, Leão XIII, com a Rerum novarum que,
em 1891, abordou a questão do trabalho e a situação intolerável vivida pelos
operários. São João XXIII, na Mater et Magistra, 1961, promoveu uma
justiça de dimensões mundiais, conclamando os países ricos a socorrerem os
países pobres.
O Concílio
Vaticano II (1962-1965) marcou uma etapa fundamental. São João XXIII declarou
que a Igreja quer ser a “Igreja de todos e particularmente Igreja dos pobres”
(1962). Cardeais, como Lercaro, insistiram que “o mistério de Cristo na Igreja
sempre foi e continua a ser [...] o mistério de Cristo presente nos pobres”,
tornando-se, em certo sentido, o “único tema de todo o Vaticano II”. Isto
exigiu uma nova forma eclesial, mais sóbria e menos mundana (cf. n. 84).
São Paulo VI
endossou essa visão, afirmando que a Igreja olha para os sofredores, pois eles
lhe pertencem “por direito evangélico”. Ele simbolicamente expressou que o
pobre é “representante de Cristo”, e que a representação de Cristo no pobre é
universal, enquanto a do Papa é pessoal, podendo o “pobre e Pedro coincidirem”
(cf. n. 85). A Constituição Pastoral Gaudium et spes reafirmou a
destinação universal dos bens e a função social da propriedade, negando o
direito de reter o supérfluo quando a outros falta o necessário.
São João Paulo II
consolidou a opção pelos pobres como “forma especial de primado na prática da
caridade cristã” (Sollicitudo rei socialis), alertando contra o risco de
sermos como o “rico epulão” que ignora Lázaro. Enfatizou ainda o trabalho
humano (Laborem exercens) como chave da questão social, buscando superar
o paternalismo. Bento XVI, por sua vez, na Caritas in veritate, ofereceu-nos
uma leitura política, afirmando que a fome não se deve à escassez material, mas
à escassez de recursos sociais e institucionais, pedindo o trabalho pelo bem
comum como meio de atender às necessidades reais.
O Papa Francisco denuncia
a “ditadura de uma economia que mata” e as “estruturas de pecado” (Evangelii
Gaudium; Dilexit nos) que promovem a desigualdade e a alienação
social, fazendo parecer normal a indiferença para com o próximo. Ele critica a
autonomia absoluta dos mercados e a especulação financeira que impõe uma “nova
tirania invisível”. O Papa recém-falecido exige ainda que se resolvam as causas
estruturais da pobreza com urgência, pois a falta de equidade é a “raiz dos
males sociais”. O modelo do sucesso individualista em vigor marginaliza os mais
frágeis, o que leva a sociedade a uma “poço de imundície” se não for corrigido.
Também o
Episcopado Latino-Americano (Conferências de Medellín, Puebla e Aparecida) deu
um impulso fundamental, qualificando as estruturas de injustiça como “pecado
social”[4] e defendendo uma opção
franca e profética pelos pobres. A Conferência de Aparecida (2007), a última
delas, foi crucial ao insistir que as comunidades marginalizadas devem ser
vistas como sujeitos capazes de criar cultura própria, e não apenas como
objetos de beneficência. Sua experiência de pobreza lhes confere uma “inteligência
específica, indispensável à Igreja e à humanidade”.
O Papa Francisco,
por fim, convida-nos a “deixarmo-nos evangelizar” pelos pobres e a reconhecer a
“misteriosa sabedoria” que Deus comunica por meio deles. A proximidade real e
cordial com os pobres – vivendo com eles – é necessária para apreciá-los na sua
cultura e no seu modo de viver a fé, para, então, acompanhá-los em seu caminho
de libertação. A proposta do Evangelho é o Reino de Deus, que visa um espaço de
fraternidade, justiça e dignidade para todos.
Capítulo V: Um
permanente desafio (103-121)
O texto da
Exortação Apostólica Dilexi te conclui a reflexão sobre a opção pelos
pobres destacando que essa atenção é um elemento essencial e ininterrupto da
Tradição da Igreja, sendo a garantia evangélica de sua fidelidade a Deus.
O Santo Padre enfatiza
que o amor pelos pobres é um apelo contínuo do coração da Igreja e que toda
renovação eclesial passa por essa atenção preferencial. O cristão não pode ver
os pobres apenas como um problema social; eles são uma “questão familiar”,
pertencem “aos nossos”. É preciso dedicar-lhes tempo, amável atenção e
acompanhamento, buscando ativamente a transformação de sua situação (cf. Conferência
de Aparecida, 2007).
A cultura atual
incentiva a indiferença e o analfabetismo no cuidar. A parábola do Bom
Samaritano é reatualizada como um mandato diário (“Vai e faz tu também o mesmo”
– Lc 10,37). O Papa Francisco convida-nos à reflexão: ao ver um pobre, o
reconhecemos como um ser humano com a mesma dignidade que a nossa, uma imagem
de Deus, um irmão redimido por Cristo? Ignorar o sofrimento do outro é sintoma
de uma sociedade enferma.
São Gregório Magno
advertia contra a indiferença e os preconceitos (como aquele que diz serem os
pobres responsáveis por sua miséria). O texto assinala ainda que a prosperidade
pode cegar o fiel, levando-o a buscar uma felicidade desvinculada dos outros. Em
uma reviravolta surpreendente, afirma-se que os pobres nos evangelizam,
revelando a nossa própria fraqueza e a inconsistência do nosso orgulho. A
condenação do rico epulão, na Bíblia, não foi por roubar, mas por descuidar do
próximo, tornando-se arrogante e sem compaixão.
Para os cristãos,
os pobres não são uma categoria sociológica, mas a própria carne de Cristo –
uma carne que tem fome, sede, está doente e na prisão. O mistério da Encarnação
exige que a Igreja “dirija-se à carne de Cristo” nos necessitados. O coração da
Igreja é, por natureza, solidário com os “descartáveis” da sociedade.
A falta de
compromisso com o bem comum, a defesa e a promoção dos mais fracos é uma grave
incoerência. Uma comunidade que busca tranquilidade, sem cooperar criativamente
para a dignidade dos pobres, corre o risco de dissolução e de ser submersa pelo
mundanismo espiritual (práticas religiosas e discursos vazios sem frutos). E
mais: A pior discriminação que os pobres sofrem é a falta de cuidado
espiritual. Opiniões que desvinculam a fé da promoção integral – como delegar o
cuidado unicamente ao Governo, ou focar apenas em “elites” – revelam um
mundanismo que privilegia relações superficiais e critérios desprovidos de luz
sobrenatural.
A esmola, muitas
vezes desprezada, é reafirmada como um momento necessário de contato, encontro
e identificação com a condição do outro. Embora o auxílio mais importante seja
um bom trabalho (que permite o florescimento da humanidade), a esmola também é
vital para garantir o indispensável para viver dignamente. Todavia, a esmola
não isenta as autoridades de suas responsabilidades, mas convida o fiel a
parar, olhar nos olhos do pobre, tocá-lo e partilhar. Os santos a descreveram
como a “asa da oração” (São João Crisóstomo). O amor e as convicções precisam
ser alimentados por gestos pessoais, frequentes e sinceros. Tocar a carne
sofredora dos pobres é essencial, mesmo que não seja a solução para a pobreza
global.
O amor cristão é
profético, supera barreiras e não
tem limites. Uma Igreja que não coloca limites ao amor, mas acolhe a
todos, é a Igreja de que o mundo precisa. Enfim, “quer através do vosso
trabalho, quer através do vosso empenho em mudar as estruturas sociais
injustas, quer através daquele gesto de ajuda simples, muito pessoal e próximo,
será possível que aquele pobre sinta serem para ele as palavras de Jesus: ‘Eu
te amei’ (Ap 3,9)” (n. 121).
Eis, em poucas
palavras, a Exortação Apostólica Dilexi te, do Santo Padre, o Papa Leão
XIV.
Vanderlei de Lima,
eremita de Charles de Foucauld, autor do resumo.
[1] Os números dizem respeito aos
parágrafos da Exortação Apostólica Dilexi te.
[2] Amou-nos (Rm 8,37).
[3] Dom Estêvão Tavares Bettencourt,
OSB, escreve: “Padres da Igreja são escritores (não necessariamente presbíteros
ou bispos) que nos primeiros séculos contribuíram para a exata elaboração e a
precisa formulação das verdades da fé em tempos de debates teológicos com
escolas heréticas” (História da Igreja.
Rio de Janeiro: Letra Capital, 2012, p. 16).
[4] O tema é um tanto complexo de ser entendido (cf. João Paulo II. Reconciliação e penitência, 02/12/1984, n. 16. Catecismo da Igreja Católica n. 1869).
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